top of page
Foto do escritorPedro Paulo Funari

Eram os cristãos subalternos?

Atualizado: 16 de abr. de 2020

Por Pedro Paulo A. Funari, Unicamp.


Grafite ΑΛΕ ξΑΜΕΝΟϹ ϹΕΒΕΤΕ ϑΕΟΝ, Alexamenos cultua Deus, considerado como ataque dominante a um cristão. Fonte: Ronald V. Huggins.

Paulo Nogueira, estudioso notável da religiosidade antiga, retorna em seu último livro a um tema recorrente: o caráter popular dos seguidores de Jesus. Vale a pena refletir um pouco sobre isso: quão populares eram esses primitivos cristãos? Toda história é interpretação, e isso no presente, mesmo que sobre o passado, e tendo em vista anseios de futuro. Não há como ser de outra maneira. Nogueira parte de uma abordagem no âmbito da História Cultural, em particular, na esteira da cultura como narrativa. A teoria literária e a semiótica fornecem elementos para uma aproximação materialista da religiosidade popular, como o propuseram Mikhail Bakhtin e Aron Gurevitch. Há evidências abundantes, tanto no Novo Testamento, como nos chamados apócrifos, escritos extra-canônicos, a respeito da presença de populares no movimento de Jesus, como escravos e pobres, mas há, também, muitas menções a pessoas alfabetizadas e com recursos (Marcos, 15, 42-46; Atos, 16, 13-15). O próprio Jesus aparece, aqui ou ali, a ler (Lucas 4, 16) e a escrever (João 8, 6), a participar de ambientes abastados (João 2, 1-12). Paulo de Tarso, autor dos escritos cristãos mais antigos que chegaram até nós, trabalhava (2 Tessalonicenses, 3-8), mas era não só letrado, como estudado, tanto em grego, como em hebraico, ao que se pode supor pelo que ele diz sobre si mesmo (Filipenses, 3, 5). Muitos desses primeiros seguidores de Jesus eram chamados de pobres, termo recorrente nos Evangelhos e há mesmo condenações explícitas aos ricos e ao acúmulo de riqueza (Lucas, 18, 24-25). Por outro lado, refeições (ceia do Senhor, eucaristia, como se diria depois) em casas de cristãos abastados congregavam humildes, não sem conflitos.


Pobres e ricos participavam desse mundo cristão inicial, o que nos coloca a questão do que os poderia unir, ainda que de forma parcial e contraditória. Isso leva-nos aos subalternos, à subalternidade, neologismo prenhe de significados. Generalizada no século XX, a expressão é bem anterior, usitada desde o século XVI para designar estar debaixo. O anti-colonialismo viria a dar novos sentidos à palavra, mas sempre ligados à situação de submissão, ao estar à parte, abaixo de outros (o nome do blog que publica este texto se refere à História vista de baixo). O princípio mais geral não precisa ser a submissão, mas a desconsideração do outro, com seu potencial não apenas de colocar o outro em posição inferior, como de eliminá-lo, em termos físicos, mas nunca sem consequências para o dominador ou destruidor. Se tomarmos em conta a convivência dos diversos, não a sua submissão ou destruição, o passado pode servir ao presente para um futuro mais justo.


A partir dessa perspectiva, esses primeiros seguidores de Jesus, pobres e ricos, letrados e analfabetos, mulheres e homens, jovens e velhos poderiam ser acomunados pela experiência de exclusão e pela marginalização, mas também busca da superação das dicotomias excludentes e opressoras. Poderiam, a depender da nossa leitura, a partir do que queremos das relações humanas (e mesmo além, daquelas com todos os seres vivos) no presente e no futuro. O profeta (Isaías, 11, 6; 65, 25), ao anunciar o convívio do predador e da presa, atesta bem a antiguidade dessa proposição de empatia expandida, para além até da regra de ouro (tratar o outro como a si mesmo, Levítico, 19, 9-18; Marcos 12, 30-31). O protagonismo feminino entre esses primitivos cristãos, em particular como atestado nos Evangelhos e nas cartas autênticas de Paulo, vai na direção dessa leitura libertária.


Bom Pastor, Catacumba de Priscila, Roma, Itália, cerca 250/330 d.C. As catacumbas podem ser interpretadas como heterotopias (sensu Foucault), frente a normalidade dominante. Fonte: Wikipedia Commons.

Mas, dirão tantos, e as repetidas referências ao dever de obediência de escravos a senhores (Efésios, 6, 5), de mulheres a homens (Efésios 5, 22-24), as condenações de comportamentos variados considerados abomináveis, como sodomia (Corínitos 6, 9-10), culto a demônios (Colossenses 3, 5), promiscuidade (1 Coríntios 7, 2), entre outros tantos, como ficam? E seus usos no presente, ainda mais opressivos, ao servir para perseguir e mesmo eliminar aqueles que se comportam desta ou daquela maneira, o que dizer? A resposta parece simples: a História é sempre feita no presente e, acrescentemos, visando a um futuro. Podemos valorizar, sem desconsiderar as contradições e limites, a potência libertária dos primitivos seguidores de Jesus, em sua potencial abertura para o outro, para a diferença. Opressão ou liberdade, respeito ou destruição, cabe a nós, como humanos, mas também como historiadores, escolher. Os seguidores de Jesus podem ser, como diria Walter Benjamin, mensageiros de mudanças (como o angelus nouus), prenhes de paz entre diferentes, não do silêncio dos cemitérios (Tácito, Agricola, 1, 21).


636 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page