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Foto do escritorJulio Magalhaes

Quando debater religião estava na boca do povo

Por Julio Cesar Magalhães de Oliveira, Universidade de São Paulo.


224º Derby della Madonnina, estádio San Siro, 21/09/2019: coreografia da torcida do Milan na Curva Sud.

Numa recente partida de futebol entre o Milan e a Inter, o clássico milanês, a torcida rubro-negra estendeu no estádio uma enorme faixa com Santo Ambrósio calcando aos pés uma cobra azul (a cor dos adversários). No mosaico formado pela torcida, a legenda dizia:“A lenda narra uma história que é fruto da fantasia e da imaginação, mas a realidade mostra que inclusive o padroeiro caiu na tentação. Ao diabo, a fé”. Compartilhando essa imagem no Twitter, um historiador (Robin Whelan) observou a ironia dessa representação: os torcedores do Milan estariam sugerindo que torcer para a Inter seria o mesmo que adotar o Arianismo tão combatido pelo bispo de Milão no século IV? Claro que os torcedores do Milan estavam apenas se apropriando (de forma criativa e bem humorada) da imagem combativa do padroeiro da cidade e fazendo referência a lendas posteriores (a do diabo em forma de cobra que teria tentado morder o santo). Ainda assim, num aspecto, eles certamente honravam a memória do bispo, pois os debates teológicos nos quais Ambrósio esteve envolvido mobilizaram as paixões populares tanto quanto o futebol hoje em dia mobiliza os torcedores. Por que isso ocorria?


A controvérsia ariana foi apenas uma das muitas controvérsias nas quais os cristãos dos Império Romano se viram envolvidos, especialmente a partir do momento em que o primeiro imperador cristão, Constantino, e seus sucessores buscaram apoiar a formação de uma unidade doutrinária que não havia até então. Por “Arianismo”, referimo-nos à doutrina cristã sobre Deus defendida, em princípio, por Ário, um padre da igreja de Alexandria no começo do século IV, que insistia na inferioridade e dependência do Cristo Palavra em relação ao Pai, o único Deus por natureza. Aos olhos da ortodoxia triunfante, essa doutrina seria considerada uma grave heresia, mas em sua época as coisas eram bem menos claras. Na verdade, foi a crise provocada por Ário que levou à elaboração, entre os Concílios de Niceia, em 325, e Constantinopla, em 381, da doutrina ortodoxa sobre Deus.


No centro da controvérsia ariana estava uma questão essencial para o Cristianismo, mas sobre a qual, até o século IV, não havia nenhum consenso: como é possível acreditar que Jesus seja um ser divino e insistir, ao mesmo tempo, na existência de um só Deus? Para os cristãos que estavam habituados a considerar a imutabilidade e impassibilidade como algo da essência de Deus (“aquele que é”), tal questão implicava ainda outra indagação: como podia esse Deus impassível ter sofrido em Jesus? A resposta de Ário foi distinguir o Deus impassível do Cristo Palavra, fazendo deste Logos o mediador entre a vida divina e a realidade contingente, a primeira de todas as criaturas e “Deus” pela graça divina, mas não por natureza. Ário levava assim às últimas consequências ideias partilhadas por muitos cristãos de seu tempo. Mas para outros, como Atanásio de Alexandria, tal concepção implicava a impossibilidade da própria Redenção: pois, como podia a humanidade frágil e instável ser salva se a Palavra encarnada não partilhava da natureza imutável e impassível do Pai?


Desde o início, a controvérsia envolveu intensamente a população de Alexandria e de outras cidades do Império Romano. Nas palavras de Sócrates de Constantinopla, “tudo era uma agitação só: via-se não apenas os chefes das Igrejas se digladiando com argumentos, mas também as multidões divididas, uns de acordo com esse, outros se inclinando para aquele. O assunto chegava a tal ponto de extravagância que o cristianismo era satirizado em público nos próprios teatros!” (História Eclesiástica, I, 6, 35). Às vésperas do Concílio de Constantinopla de 381, Gregório de Nissa ainda testemunhava o imenso interesse popular que essas questões suscitavam: “quando você pergunta a cotação ao cambista, ele lhe responde com uma discussão sobre o gerado e o não-gerado; se você pergunta sobre o preço do pão, a resposta é que o Pai é maior que o Filho por ser este subordinado; se, nas termas, você pergunta se o banho está pronto, o servente lhe responde que o Filho procede do nada” (Sermão sobre a divindade do Filho e do Espírito Santo).


Esse intenso engajamento popular pode ser, em parte, explicado pelos esforços dos próprios clérigos em obter o apoio do maior número possível de fieis para sua causa. Para tanto, os adversários em disputa não hesitavam em recorrer às mais inovadoras técnicas de difusão de massa. Ário, por exemplo, compôs canções sobre Deus num ritmo popular para serem cantadas por “marinheiros, moleiros, viajantes e [...] todos os iletrados” (Filostórgio, História eclesiástica, 2, 2). O próprio Ambrósio, em Milão, compôs hinos para manter o moral de seus fieis entrincheirados numa basílica sitiada (o que, no final das contas, mostra que o bispo não se sentiria tão deslocado assim entre os cantos dos torcedores no estádio de Milão!).


Mas a iniciativa dos clérigos é só parte da história. Como Carlos Galvão Sobrinho e outros historiadores têm demonstrado, se os cristãos comuns se dispunham a se engajar nesses debates e, em muitos casos, até mesmo pegar em armas e partir para a violência para defender sua visão sobre Deus é também porque essas disputas desafiavam sua própria identidade enquanto cristãos. Assim, nos primeiros anos da controvérsia, enquanto os partidários do bispo Alexandre diziam "nós somos os cristãos que defendem a divindade do Cristo", os partidários de Ário afirmavam defenderem um Cristo que realmente sofreu "como nós". Além disso, quando uns diziam serem os verdadeiros cristãos por defenderem uma visão específica sobre o modo de geração do Filho, eles negavam aos outros sua própria condição de cristãos – e por isso lutavam para obterem seu reconhecimento como cristãos. Com o tempo, essa autodefinição constituída em relação aos outros se consolidaria pela constante evocação do passado de perseguição e violência que havia separado os grupos. Isso explica por que, mais tarde, Ambrósio conseguiria mobilizar seus fieis por dias e noites inteiros, trancados dentro da igreja, cantando hinos, enquanto o exército a mando de uma imperatriz pró-ariana a cercava para forçar o bispo a entregar a basílica à comunidade adversária (Ambrósio, Cartas, 75, 75A e 76). É porque, por essa época (na década de 380), as imagens de impureza associadas aos adversários religiosos haviam se tornado tão potentes que muitos cristãos preferiam morrer, em caso de ataque pelos soldados, do que entregar sua igreja à profanação por seus odiosos inimigos.


Nestes tempos fraturados em que vivemos, não é difícil encontrar quem se simpatize com a opinião de um Constantino, que preferia que certos assuntos nunca fossem ditos em público para não caírem “na boca do povo” (Eusébio, Vida de Constantino, II, 64). É uma solução fácil – mas perigosa. Não há dúvida que vemos à nossa volta líderes manipuladores, mas se as controvérsias do século IV ensinam alguma coisa à nossa política é que esses líderes não determinam simplesmente a disposição das pessoas comuns em agir. Nunca o esforço de entender as razões de suas paixões, inquietudes e anseios se tornou tão importante – pelo menos para aqueles de nós que ainda acreditamos numa sociedade democrática.


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