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Foto do escritorNara Oliveira

O desejo pelo fim dos preconceitos e das amarras epistemológicas. Entrevista com Jean-Michel Carrié

Atualizado: 11 de mai. de 2020

O prof. Dr. Jean-Michel Carrié esteve em São Paulo no dia 14 de outubro de 2019 para a participação no Workshop “Subalternidade e fronteira no Império Romano do séc. II ao V d.C” (para assistir ao workshop, clique aqui), evento promovido pelo Grupo de pesquisa sobre os Grupos Subalternos e Práticas Populares na Antiguidade e pelo Laboratório de Estudos do Império Romano e Mediterrâneo Antigo (LEIR-MA).


Jean-Michel Carrié é Diretor de Estudos da École des hautes études em sciences sociales (EHESS), em Paris; vice-presidente e membro do comitê diretor da Accademia Romanistica Costantiniana; membro do conselho administrativo da Association pour l’Antiquité tardive e membro da Association Internationale des Papyrologues e da Association française d’historie économique. Atualmente está engajado na tradução dos discursos de Libânio e do Código Teodosiano, livros VII e XI (capítulos 1 ao 28).


Além de sua conferência, o professor falou ao Blog sobre o impacto que seu trabalho teve no conceito de colonato romano, as condições dos trabalhadores urbanos na Antiguidade e quais as perspectivas para a área de estudos dos grupos subalternos. Veja a seguir sua entrevista. ­



Em 1982 e 1983, o sr. publicou dois artigos de 20 e 50 páginas que perturbaram a historiografia das instituições romanas. Nesses artigos, o sr. chama o colono do Baixo Império de um "mito historiográfico", que deve sua cristalização às interpretações de Fustel de Coulanges. Quinze anos depois, em 1997, voltou a esse assunto em um texto em italiano "Colonato del Basso-Impero: la resistenza del mito". Hoje, passados 20 anos, o sr. acha que o mito ainda resiste aos estudos das relações sociais rurais no Império Romano tardio? Quais são as consequências para o estudo das classes subalternas desse meio?


Bom, você falou desse congresso, do qual eu participei. Eu fiquei um pouco decepcionado, pois eu havia escolhido o título antes de chegar lá, “a resistência do mito”, e eu não encontrei mais a resistência do mito. Bem, de qualquer maneira, bem pouco, residual... Eu reconheço que eu havia sido um tanto provocador nos meus dois primeiros artigos. Eu vi isso um pouco como um tipo de... uma forma de saber. E por conseguinte, a ciência pode facilmente ser triste, e eu decidi que a tornaria alegre, indo um pouquinho no sentido do sacrilégio. Então, tudo aconteceu por conta de uma visita de Finley a Roma, e havia um encontro da equipe da revista Opus, do qual participei. Eu já havia escrito um pequeno texto polêmico e foi a partir disso que se desenvolveu, tudo veio desse artigo, que não foi muito cortês a respeito de Moses Finley, por quem eu tinha muita admiração, diga-se de passagem. Porque eu achava que ele era um grande historiador da Grécia, mas que para Roma, ele se aventurava por um terreno que ele conhecia mal. E então, quando eu vi o quanto ele se apoiava em Fustel de Coulanges, me deu vontade de ir a fundo e ler Fustel de Coulanges. E eu tinha escrito um texto sobre o modo com o qual Fustel de Coulanges escrevia a história na terceira pessoa do singular, usando o pretérito simples, exatamente como os romancistas realistas do século XIX, cujos modos de funcionamento da escrita foram estudados por Roland Barthes. E isso fez parte de um bocado de coisas que eu nunca publiquei, que descansam na gaveta, e pode ser que... eu gostaria bastante de revisitá-las em breve e publicá-las, mas...

Então, bem... não mudou, não revolucionou a face da Terra, sem dúvida, mas para mim as coisas se conectam, quero dizer que, por exemplo, é porque eu trabalhei por vezes sobre o exército e sobre aspectos financeiros que me pareceu que eu poderia compreender certas coisas que eu não entendia antes. Trabalhando sobre as fontes papirológicas e jurídicas, lá também há conexões que nos pareciam abrir portas. A mesma coisa acontecia a propósito das moedas, é o cruzamento entre a documentação papirológica e igualmente os textos jurídicos, bem mais que a numismática, que, eu creio, nos permite compreender um pouco como funcionava a emissão monetária e a inflação, isso que chamamos de inflação do século III. O que, a propósito é engraçado, pois essa inflação do século III dura uns trinta anos, mas cem anos no século seguinte. Então poderíamos chamar mesmo de inflação do século IV, mais do que do III.

Mas quando trabalhamos a partir de um só tipo de documentação, nós somos inevitavelmente levados a tangenciar uma parte da realidade. E o numismata pensava que nós podíamos concluir tudo a partir do peso, do tamanho e do grau da liga metálica. Isso não é nem um pouco bom, pois esse foi um período de empobrecimento e mesmo praticamente do desaparecimento do abastecimento de prata, ao passo que o sistema monetário romano dependia do ouro e da prata e nos esquecemos um pouco da importância do ouro para os primeiros séculos do Império, mas a partir do momento em que não temos mais a prata isso se torna um problema terrível, pois com a moeda de ouro não era muito fácil de comprar um sanduíche, não é? E uma vez que a prata permite que se mantenha um poder de compra médio, a partir do momento em que a prata fica escassa, isso se torna um problema muito, muito grave. Seria preciso que os romanos descobrissem o Brasil antes dos portugueses, mas isso não aconteceu. Então, eu sempre pensei que era preciso trabalhar sobre vários documentos, diversos tipos de fontes, e de fazer com que elas dialogassem.



Além das relações entre proprietários e colonos, o sr. também se interessou muito pelos trabalhadores urbanos na Antiguidade Tardia. No seu texto intitulado "Les associations professionnelles à l’époque tardive, entre munus et convivialité", o sr. propõe uma "des-dramatização" dos estudos sobre as condições de vida dos artesãos e lojistas. Hoje, como vê os estudos sobre o mundo do trabalho urbano dessa época?


Sim, bem... meio que como no caso dos colonos, eu trabalhei mais a partir da interpretação de textos que definiam o estatuto e o tipo de associações que sobre as condições mais concretas e quotidianas dos trabalhadores urbanos. Não é de maneira alguma uma escolha de preferência, mas eu achei que era mais difícil trabalhar acerca dos aspectos mais concretos, como o fez por exemplo de maneira excelente Domenico Vera para a população rural, se cometêssemos erros interpretativos sobre o estatuto e sobre as condições de sua definição jurídica, social. E portanto, os dois são complementares. Eu me desloquei, muitas vezes, para outros problemas, e como pessoas como Domenico faziam o trabalho de maneira excelente, não foi... não foi uma escolha... eu não creio que tenha sido uma escolha ideológica de minha parte. Me parecia mais urgente, porque isso podia talvez fazer desaparecer preconceitos, soltar as amarras epistemológicas que até então haviam realmente obstruído a questão.

Bom, a questão do colonato estava travada, por causa do prestígio de Fustel de Coulanges, da mesma forma que hoje a visão que podemos ter da vida na cidade continua a ser bem mais influenciada por Mommsen. O que sempre me agradou foi o fato de nunca estar sozinho, pois quando estou sozinho isso me deixa bastante inquieto. E sobre as cidades, bom, a vida municipal do Oriente foi muito bem estudada por Avshalom Laniado. Logo, sempre me agradou o fato de que eu não me sentia totalmente só. Mas aí, por exemplo, é a mesma coisa sobre os trabalhadores urbanos, podemos dizer que eu tenho uma fixação sobre a questão fiscal do Império, mas, se consideramos que praticamente um a cada sete textos do código teodosiano lida com a fiscalidade, nós a encontramos em todos os lugares, praticamente em todos os livros, sob diferentes ângulos, mas é verdade que a fiscalidade explica muito, e a maneira com a qual o fenômeno associativo urbano foi remodelado na época tardia por vias da fiscalização sobre as atividades artesanais e tudo mais, monta também novas bases sobre as quais, posteriormente, todo o trabalho deve ser feito, de ver concretamente como tudo acontece.

E desse ponto de vista, eu acho que foi a Arqueologia que revolucionou a História Antiga nos últimos 50 anos, e ainda mais nos 30 últimos anos, ainda mais nos últimos 10 anos, e esperamos que a tendência continue assim. Os avanços metodológicos. Por exemplo, para mim, uma descoberta inesperada foi a importância dos produtos têxteis na produção econômica. Bom, no começo, isso veio de algo sobre o qual eu tive a chance de ter sido convidado a trabalhar, um sítio arqueológico no Egito. Se por um lado, ainda 10 ou 15 anos atrás, talvez mais nessa época, em alguns sítios, quando encontrávamos tecidos, sequer sabíamos que se tratava de tecidos, pois já não pareciam com coisa alguma, logo, eram descartados. A partir do momento em que os arqueólogos recuperaram os tecidos, e isso junto ao melhoramento dos métodos laboratoriais que permitiram que lhes devolvêssemos seu aspecto original, suas cores, a textura, os tecidos que descartávamos antes, pois não pareciam com nada, a partir de então os especialistas em tecido revolucionaram aquilo que conhecíamos. Com base nesses conhecimentos arqueológicos nós podíamos retomar o estudo dos textos, inclusive jurídicos, por vezes. Bom, logicamente, deveríamos considerar o produto têxtil, que era uma necessidade básica para todos, ainda que todos não se vestissem da mesma forma, havia pobres que se vestiam de uma maneira lamentável... mas o que é claro é que a classe média do mundo romano, que era, de qualquer maneira, relativamente numerosa, afinal, demograficamente o mundo não conhecerá novamente os níveis da antiguidade do ponto de vista demográfico, do ponto de vista do nível de vida, do PIB, antes do século XVIII, praticamente.

Então, havia uma produção massiva, que se deveu totalmente ao aperfeiçoamento das técnicas, e o gosto do público por tecidos mais complexos, mais elegantes etc. Não seria possível fabricar esse tipo de tecido em casa. Essa produção se tornou um setor proto-industrial, em certos casos, e comercial. Portanto, quando [Arnold Hugh Martin] Jones dizia que a produção agrícola devia representar mais ou menos 85%, eu acho, da produção total, de todas as atividades juntas, agrícola, artesanal etc. Mesmo durante a Idade Média eu creio que também, bom, não falo da Baixa Idade Média, da qual conhecemos o volume de produção das grandes cidades portuárias, Flandres, Florença etc. mas mesmo na Alta Idade Média, era necessário de qualquer maneira que as pessoas se vestissem. Além disso era um setor de valorização da produção agrícola, com um valor agregado ao produto in natura. Ele representava um setor bastante forte da atividade econômica. E aí, bom, no começo foi a arqueologia que começou esse movimento.



O sr. escreveu sobre as condições sociais e econômicas de vários grupos sociais, de escravos e camponeses a soldados e artesãos, a uma discussão sobre como definir a linha de pobreza. Como vê as perspectivas de estudos em torno dos grupos subalternos na Antiguidade Tardia?


Eu penso que talvez podemos nos beneficiar dos estudos iconográficos. E aí também, a iconografia é um tipo de documentação que precisa ser colocada em diálogo com as outras. Em matéria teórica, sei que é um assunto delicado de tocar, mas penso que ainda há trabalho a fazer na elaboração de esquemas teóricos sobre o modo de produção. Bom, “modo de produção” é complicado, pois não podemos de maneira alguma generalizar geograficamente, nem mesmo cronologicamente, mas podemos... há sem dúvidas muito trabalho a ser feito para distinguirmos a evolução. Um sonho seria poder escrever uma história econômica, social e mesmo político-ideológica da antiguidade, geração por geração. Creio que seja um pouco utópico, pois a documentação é bem desigualmente distribuída, pouco sequencial. É sempre difícil de arriscar fazer as curvas, quando temos apenas quatro pontos que se movem numa espécie de deserto estatístico, mas talvez em certos casos, podemos identificar com precisão certos momentos críticos, mas que certamente não vão adquirir caráter universal. Pode haver momentos de reviravolta histórica em certos fatores e não para outros. Eu tenho certeza que podemos ainda ganhar muito em matéria de precisão, para refinar nosso conhecimento sobre as fases históricas, momentos de transformação.


Filmagem e Entrevista: Jessica Brustolim e Pedro Benedetti

Tradução: Pedro Benedetti

Edição: Nara Oliveira





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