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Foto do escritorJulio Magalhaes

Pandemia e desigualdade: o caso da Praga de Justiniano

Atualizado: 24 de out. de 2021

Por Julio Cesar Magalhães de Oliveira, Universidade de São Paulo.


Crânios de uma mulher de 25-30 anos e de um homem de 20-25 anos, vítimas da Praga de Justiniano em um cemitério do século VI na Alemanha. Foto: State Collection of Anthropology and Paleoanatomy Munich. Fonte: Agência Estado.

A rápida difusão do novo coronavírus e a transformação da Covid-19 em uma pandemia que já afeta todos os continentes (com exceção da Antártida) tem suscitado, mais uma vez, o interesse pela história das doenças infecciosas. Na verdade, desde a emergência da AIDS nos anos 1980 e mais ainda com o processo de globalização e a difusão em escala global de agentes infecciosos como o coronavírus associado à SARS, o Zika e o Ebola, é frequente assistirmos a comparações com outras epidemias e pandemias na história. Muitas vezes, porém, esse interesse contemporâneo tem resultado em visões catastrofistas das doenças históricas que buscam, a todo custo, demonstrar o colapso social e a destruição dos sistemas econômicos que elas provocariam, em especial quando essa visão corrobora as grandes narrativas a que estamos habituados. Um bom exemplo disso é a Praga Justiniana (c. 541–c. 750), que muitas vezes é tomada como uma catástrofe de tão grandes proporções que teria marcado o verdadeiro fim do mundo antigo e o início da Idade Média Bizantina.


A Praga Justiniana foi uma das três grandes pandemias de peste bubônica ao longo da história, seguida pela Peste Negra, no século XIV, e pela Terceira Peste, no sudeste asiático e no mundo, de 1894 a 1950. A peste bubônica é uma das três formas de infecção provocadas pela bactéria Yersinia pestis que vive em roedores e suas pulgas (as outras duas são a peste pulmonar e a peste septicêmica). Após 1 a 7 dias de infecção pela bactéria, os primeiros sintomas apresentados são febre, dores de cabeça e vômitos. Em seguida, há inflamação dos gânglios linfáticos que, em alguns casos, podem expelir pus. Ao contrário da Peste Negra e da Terceira Peste, porém, temos muito menos informações sobre o impacto demográfico, econômico e cultural da Praga de Justiniano. Dependemos em parte de fontes literárias, que não devem ser tomadas pelo seu valor de face, e mesmo a pesquisa arqueológica, a partir da identificação do DNA da Y. pestis nos esqueletos, ainda oferece poucas amostras para uma abordagem quantitativa conclusiva.


De acordo com a crônica de João de Éfeso, um bispo contemporâneo da eclosão da pandemia e que serviu de base para todos os cronistas posteriores, a peste se iniciou na Etiópia, espalhou-se para o Egito e, a partir de Alexandria, difundiu-se para todo o Mediterrâneo, incluindo a Líbia, a África do Norte, a Sicília, a península itálica, a Gália e a Espanha (apud Miguel, o Sírio, Crônica, liv. 9, cap. 28). De Alexandria, ela também se espalhou para a Palestina e daí para a Cilícia, Mísia, Síria, Icônio, Bitínia, Ásia, Galácia e Capadócia até chegar à capital do Império Romano do Oriente, Constantinopla (Pseudo-Dionísio de Tel-Mahre, Crônica, a. 855 [=543/44 d.C.], cap. 2). Segundo Zacarias, o orador, a pandemia se espalhou ainda pela Fenícia, Arábia, Armênia, Mesopotâmia e aos poucos se difundiu entre os persas (apud Miguel, o Sírio, Crônica, liv. 9, cap. 28).


A primeira onda da pandemia parece ter durado três anos, mas ela retornaria em ondas recorrentes até meados do século VIII. A praga se espalhou junto com viajantes como o próprio João de Éfeso, que descreve a extensão da doença durante seu trajeto da Palestina até Constantinopla. No Mediterrâneo, sua expansão esteve especialmente associada aos portos, onde atracavam navios com ratos infectados. A extensão e rapidez com que a doença se espalhou são variáveis. Durante dois anos a partir de sua primeira eclosão, os habitantes de Constantinopla apenas souberam da doença por ouvir-dizer (Pseudo-Dionísio de Tel-Mahre, Crônica, a. 855 [=543/44 d.C.], cap. 3). Segundo João de Éfeso, a mortalidade na Palestina foi maior do que em Alexandria, deixando vilarejos e cidades vazios. Em Constantinopla, eram retirados por dia 5.000, 7.000, 12.000 e até 16.000 corpos dos mais pobres, pois eles eram os primeiros a morrer, até que ao chegar a 230.000 corpos acumulados os responsáveis deixaram de contar (Pseudo-Dionísio de Tel-Mahre, Crônica, a. 855 [=543/44 d.C.], cap. 4).


A evidência arqueológica sugere que a Praga de Justiniano se estendeu ainda além das regiões atestadas pelas fontes literárias. Pesquisadores do Instituto Max Planck e da Universidade de Munique analisaram os vestígios da bactéria Y. pestis presentes em esqueletos datados do século VI provenientes de Altenerding, um cemitério no sul da Alemanha. O sequenciamento genético de alta performance do agente bacteriano pôde comprovar que se tratava da mesma linhagem de bactéria que flagelou o Império Romano do Oriente. Como este cemitério, outros têm sido analisados na Alemanha, França, Espanha e Grã-Bretanha com o mesmo propósito.


A extensão geográfica da Praga de Justiniano atestada pelas fontes textuais (áreas hachuradas) e os sítios arqueológicos investigados recentemente. Fonte: Medievalists.net.

Em um recente artigo publicado na revista Past and Present, porém, Lee Mordechai e Merle Eisenberg argumentaram contra as abordagens históricas e arqueológicas que viram na Praga de Justiniano um acontecimento catastrófico sem precedentes. Fontes literárias como João de Éfeso não apenas não oferecem estatísticas precisas, mas apresentam resultados da peste que podem ter outras causas. Os epitáfios hoje conhecidos não sugerem uma mortalidade sem precedentes e mesmo o testemunho oferecido pela arqueologia não corrobora uma mortandade de massa. Nos cemitérios alemães em que o DNA da Y. pestis foi analisado, a presença da bactéria é muito baixa nas amostras coletadas. Os esqueletos de ratos, os principais transmissores da doença, são também raros. Segundo Mordechai e Eisemberg, “parece que os estudiosos têm extrapolado dados escassos e problemáticos para construir hipóteses amplas que apenas confirmam suas teorias formuladas previamente”.


Um problema com as abordagens catastrofistas é que elas tomam a praga como um agente de mudança autônomo, que não é nunca afetado pela ação humana. Esquece-se as diferentes estratégias que as pessoas podiam adotar para lidar com uma epidemia e, em especial, as desigualdades sociais que afetavam essas respostas. É claro que, na Antiguidade, as pessoas não adotavam quarentenas, confinamentos e protocolos de distanciamento social como os nossos. Mas elas podiam reduzir o risco da mortalidade migrando para outros lugares. Em 542, a população da zona rural de Mira se recusou a entrar na cidade por temer a peste (Vida de São Nicolau de Sião, ed. I. e N. Sevcencko, p. 52). Gregório de Tours também atesta a migração de pessoas para fora de cidades afetadas (Libri historiarum, X, 9, 22). Mesmo assim, as diferentes classes sociais não eram atingidas do mesmo modo. Vimos que, em Constantinopla, os pobres eram os primeiros a morrer e nem todas as pessoas tinham as mesmas condições de responder a doenças e outros eventos inesperados, como mudanças climáticas, terremotos e guerras.


Em um estudo recente sobre a resiliência de sociedades pré-capitalistas a esses choques, Adam Izdebski, Lee Mordechai e Sam White mostraram as diferentes respostas de três cidades do Império Romano do Oriente às tensões do século VI (e não apenas à peste). Antioquia, Apamea e Beirute mantiveram ao longo de todo o século uma notável resiliência após serem devastadas por terremotos, guerras e, no caso da primeira, quatro ondas da peste bubônica. Isso foi possível graças às ações do poder imperial, que no caso de Antioquia incentivou a migração do campo para recuperar a população da cidade e nos dois outros casos mudou sua base econômica. Nenhum desses choques representou, portanto, o "colapso" do sistema. No entanto, a recuperação não afetou a todos os habitantes da mesma maneira. É claro que nem todas as mudanças beneficiaram apenas as elites ou prejudicaram só os mais pobres. A transferência das escolas de direito e da indústria da seda de Beirute para Constantinopla, certamente prejudicou suas elites locais, enquanto os artesãos que trabalhavam na fabricação da seda na capital se beneficiaram. A diferença, porém, como bem ressaltam os autores, é que enquanto a elite podia se adaptar, sempre que as classes baixas eram afetadas, como é o caso dos trabalhadores da seda de Beirute, elas não tinham essa possibilidade. Para a elite, a migração podia ser uma oportunidade de se recuperar e até de diversificar investimentos. Para os pobres, podia representar tempos bem mais difíceis de miséria e precariedade.


Pandemias, como as guerras e terremotos, não são democráticas. Ainda que todos sofram, os mais frágeis socialmente são os que sofrem mais. E, a despeito do ideário neoliberal que grassa em nossos dias, a resiliência a esses desafios tampouco depende apenas da capacidade e da vontade de adaptação dos indivíduos.


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