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Como as democracias renascem

Por Fábio Augusto Morales, Universidade Federal de Santa Catarina.


Morena dos olhos d'água, tire os seus olhos do mar Vem ver que a vida ainda vale o sorriso que eu tenho pra lhe dar

Descansa em meu pobre peito, que jamais enfrenta o mar Mas que tem abraço estreito, Morena, com jeito de lhe agradar (Chico Buarque, Morena dos olhos d'água, 1967)


Nos idos de março de 2019, Jair Bolsonaro irrompe o céu azul com uma nova torrente de absurdos: é preciso, segundo o presidente, comemorar a revolução de 1964. Se alguém, entre apoiadores declarados e opositores moderados, ainda relutasse em atestar a aversão do regime bolsonarista à democracia, a ordem para que o Ministério da Defesa fizesse as "comemoração devidas" do golpe que instaurou um regime ilegal de 21 anos de duração, marcado pela prática da tortura e da perseguição aos opositores, não deixa qualquer dúvida. Neste contexto, livros com um título tão eloquente quanto Como as democracia morrem se tornam best sellers: a lenta decomposição da democracia instaurada em 1988 transforma o estudo de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt uma sombria paráfrase de nossa ruína.


Democracias morrem, sem dúvida; mas democracias renascem, no entanto. A História Antiga registra alguns casos de renascimento de democracias, por vezes de modo bastante detalhado. É o caso da restauração da democracia em Atenas no ano de 403 a.C., relatada por Xenofonte em suas Helênicas (obra que continuava, segundo o autor, a História da Guerra dos Peloponésios, de Tucídides), na Constituição de Atenas, atribuída a Aristóteles, e em outras fontes que mencionam o episódio mais ou menos de passagem. Vejamos.


A restauração da democracia em 403 a.C. significou a deposição de um regime que governou a cidade após a derrota final na Guerra do Peloponeso, na batalha de Égos Pótamos, em 405 a.C., quando a frota peloponésia, com reforços persas, comandada pelo espartano Lisandro, destruiu a marinha ateniense. Tomando a cidade, Lisandro negociou a rendição de Atenas. Uma das primeiras medidas foi a demolição das "Longas Murallhas", sistema de muros e fortificações que ligavam a cidade, Atenas, ao seu principal porto, o Pireu, ao longo de 9 quilômetros. As Longas Muralhas permitiram o abastecimento de Atenas durante a ocupação espartana de seu território rural: dominando o mar, Atenas tinha acesso ao trigo e demais alimentos do Mediterrâneo e mar Negro. Não era mais o caso: sem frota e sem acesso ao porto, Atenas se tornava uma cidade presa à terra, longe do mar. Outra medida foi a instalação de um regime formado por Trinta cidadãos, que teria a incumbência de reformar a constituição, indicar novos ocupantes para os cargos públicos e selecionar cinco mil cidadãos que formariam a assembleia. O novo arranjo seria a "constituição ancestral", associada à legislação de Sólon, anterior, pois, aos "exageros" da democracia: o ostracismo, o pagamento para participar da assembleia e dos tribunais, e, essencialmente, o caráter soberano da assembleia democrática. Alegando que a democracia era responsável pelas tragédias de Atenas - da malfadada expedição à Sicília à execução de almirantes que não resgataram feridos - o grupo dos "Trinta" defendia um retorno a formas oligárquicas de poder. Entre os Trinta havia cidadãos mais moderados, que defendiam um regime entre a oligarquia e a democracia, como Teramenes, e mais radicais, que defendiam a tirania pura e simples, como Crítias.


Plataforma dos oradores na colina da Pnyx, local da assembleia democrática de Atenas nos séculos V e IV a.C. (Fonte: WikiCommons).

Assim formou-se o governo dos Trinta, que a posteridade lembraria como "Trinta Tiranos". Num primeiro momento, com o argumento de eliminar os excessos da democracia, os Trinta perseguiram os "sicofantas", chantagistas que ameaçam acusar e condenar cidadãos nos tribunais, caso não fossem pagos. No entanto, em pouco tempo o regime passou a perseguir aqueles que se colocavam contra a oligarquia, e mesmo todos os que haviam sido honrados pela assembleia. Em busca de renda, o regime executou e confiscou os bens de estrangeiros residentes, os metecos, e todos os que pareciam se opor ao regime. Teramenes argumentou contra as perseguições, o que fez com que se tornasse, ele mesmo, um inimigo: foi executado pelo regime. O autor da Constituição de Atenas afirma:


"Tendo ganho maior domínio sobre a cidade, não pouparam qualquer cidadão, passando, pelo contrário, a executar pessoas eminentes - seja pela fortuna, seja pelo nascimento, seja pela reputação -, tanto preocupados em suprimir seus temores quanto desejosos de espoliar-lhes os bens. Assim, em pouco tempo, liquidaram não menos de mil e quinhentas pessoas" (Constituição de Atenas, 35.4).


A violência do regime alimentou a oposição; cidadãos e metecos exilados formaram um destacamento em Mégara, vizinha a Atenas, e, liderados pelo almirante Trasíbulo - que havia liderado os marinheiros na resistência a um golpe oligárquico anterior - tomaram uma fortaleza na Ática. O grupo que começou com algumas dezenas de soldados aumentou para as centenas, e assim conseguiram tomar o porto do Pireu. Os Trinta, cada vez mais divididos, solicitaram apoio espartano; o avanço dos democratas, no entanto, foi imbatível, e em pouco tempo os Trinta estavam exilados em Elêusis e medidas foram tomadas para a restauração do regime. Entre as medidas, estava a anistia aos cidadãos que permaneceram na cidade durante o regime, mas que não ocuparam cargos - me mnesikakein, "não lembrar dos males", tornou-se o lema da anistia. O regime seria restaurado, os males não seriam esquecidos (sendo lembrados toda vez que um dos "cidadãos que ficaram" fossem levados a julgamento), as muralhas que ligavam a cidade ao porto do Pireu seriam reconstruídas, e, com raras interrupções durante ocupações estrangeiras no período helenístico e romano, a assembleia dos cidadãos, independentemente da renda, continuaria sendo o órgão soberano do regime.


Como a democracia ateniense renasceu em 403 a.C.? A primeira impressão é inequívoca: as divisões internas ao grupo antidemocrático alimentaram a oposição democrática, que, pela força, derrubou o regime oligárquico/tirânico e restaurou a democracia. No entanto, se esta impressão não é errada, é possível perceber um nível mais profundo, e as Longas Muralhas são uma pista. Derrubar a ligação material da cidade com o porto significa cortar a ligação social com o Mediterrâneo, e a frota ateniense era protagonista nesta ligação. Frota, a saber, composta por hoplitas mas também por uma multidão de remadores e marinheiros que tinham no mar, seja pelo comércio, seja pelo império ateniense, a sua base de reprodução material. O golpe oligárquico de 404 a.C. foi um golpe da Atenas rural contra a Atena marítima, da Atenas fundiária contra a Atenas imperialista. Há mesmo notícia de que os Trinta muraram a orientação da plataforma dos oradores na assembleia da Pnyx: ao invés de discursar voltado para o mar (ainda que a visão direta fosse impossível), eles deveriam discursar voltados para a área rural. Pois, na democracia ateniense, como diria o autor anônimo (conhecido como Velho Oligarca) em sua Constituição dos atenienses, "timoneiros, contramestres, vigias e construtores de navios são os que trazem força à cidade, mais do que os hoplitas, os bem-nascidos e os homens bons; sendo este o caso, parece justo a todos tomar parte nas magistraturas e cada um ser capaz de falar suas intenções se quiser" ([Velho Oligarca], Constituição dos atenienses, 2). A democracia foi restaurada junto das Longas Muralhas; venceu a Atenas marítima, que deveria se renovar sem o império das décadas anteriores.


A Atenas marítima: dois navios de guerra em plena vela. (Vaso ático de figuras negras, assinado por Nicostenes, c. 520-510 a.C. Paris, Museu do Louvre).

Dito isto, retornemos ao Brasil bolsonarista. As atuais dissensões do governo - dividido entre militares de diferentes patentes, seguidores de Olavo de Carvalho de diferentes graduações, neoliberais de diferentes extrações e evangélicos de diferentes denominações - podem ser sinais de uma erosão do bloco antidemocrático, formado na aliança entre segmentos das elites e amplos conjuntos do precariado (que não considera a democracia ou os direitos sociais como fatores fundamentais na sua reprodução). O poder militar, no entanto, fazendo parte deste bloco, cabe perguntar: qual classe e qual coalização de forças conseguiriam proteger ou, eventualmente, restaurar a democracia brasileira? Atenas não virou as costas ao mar; que o Brasil não vire às costas, esperamos, à democracia.


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