Por Filipe Noé da Silva e Pedro Paulo A. Funari
Fundado no ano de 1890, o atual município de Andradas/MG é reconhecido, com justeza, como um importante polo de produção vinícola do Brasil: além das condições climáticas e geográficas locais serem propícias à vitivinicultura, o aperfeiçoamento constante de técnicas agrícolas associadas ao plantio e colheita das uvas também tem assegurado um lugar de destaque para os vinhos andradenses, dentro e fora do país. Além do enoturismo e da gastronomia, Andradas também oferece uma paisagem compatível com a realização de práticas esportivas diversas, como rafting, parapente, trekking, rapel e escalada.
Outra atração de Andradas é a Igreja Matriz de São Sebastião. Localizada em uma praça situada na região central da cidade, a igreja em questão é frequentada todo dia pela população, tanto por motivos religiosos quanto seculares. Além da arquitetura imponente e das obras artísticas de seu interior, a igreja apresenta outro pormenor: ainda em sua porta de entrada, pode-se ler, graças a uma placa afixada no ano de 1928, que a escadaria que dá acesso ao prédio religioso fora erigida graças à doação de um indivíduo:
Transcrição: Ao Sr. João Moscini. Generoso Offertante desta escadaria e à sua exma família as homenagens do povo e a eterna gratidão da Parochia de Caracol. 1 de Julho de 1928.
Ao longo de sua História, Andradas recebeu inúmeros imigrantes italianos, pessoas inseridas em relações de subalternização, para trabalhar em fazendas de café da elite tradicional. Algumas dessas famílias conseguiram tornar-se proprietárias com meeiros, como no caso dos Mosconi. João Mosconi, como parte desse processo de ascensão social, direcionou recursos para uma construção de uma benfeitoria pública, em busca de inserção e reconhecimento social. Por se tratar de uma doação realizada em prol de uma igreja, pode presumir-se, a princípio, um imperativo cristão subjacente à iniciativa do Sr. Mosconi: na 2ª Epístola aos Coríntios (09. 07), Paulo de Tarso ressaltava que Deus ama o que doa com alegria. As práticas de benfeitoria poderiam (e ainda podem) servir a propósitos diversos: sempre a depender do contexto histórico e das condições sociais das pessoas envolvidas nessa prática.
Na Antiguidade, as doações feitas em benefício da cidade foram realizadas em centros urbanos gregos desde os períodos clássico e helenístico. O indivíduo doador, por vezes homenageado pela comunidade, era reconhecido como benfeitor (Εὐεργέτης). As benfeitorias públicas poderiam ocorrer sob diversas formas, como: a subvenção de uma obra pública (construção ou reforma de um templo ou de uma estrada, por exemplo), oferecimento de banquetes (inclusive em ocasiões de carestia), financiamentos de eventos esportivos, espetáculos teatrais, entre outros. Nas cidades latinas, o vocábulo munus torna patente o rol de atividades passíveis de serem realizadas sob a guarida de munificência cívica: derivada de moenia a palavra em questão, na tradição textual, faz referência à atuação da população na construção de estradas e muralhas. Já à época do principado, seu uso está associado aos jogos de gladiadores (munera, no plural), celebrações religiosas, mas também à construção e manutenção de obras públicas.
Na esteira dos estudos de Paul Veyne, tem-se reconhecido que as benfeitorias cívicas eram empreendidas sob duas formas principais: de maneira espontânea, por livre iniciativa do doador, ou como uma forma de retribuição ob honorem pela nomeação a algum cargo público ou magistratura. Em ambos os casos, segundo o historiador francês, a munificência seria empreendida por indivíduos abastados que recorriam às doações com o intuito de aumentar sua estima pública, sempre em busca de glória e reconhecimento de sua benignidade em prol da cidade e da população como um todo. O exame da documentação antiga (sobretudo a epigráfica) nos revela, por sua vez, que as benemerências empreendidas no Império Romano não estavam restritas, apenas, às elites. Ao contrário, seu oferecimento também foi capitaneado por indivíduos pertencentes a grupos sociais subalternos, inclusive por pessoas egressas da escravidão. Neste caso, pode-se mesmo entrever uma estratégia social. As inscrições apresentadas a seguir tornam patente essa constatação. A primeira, datada da década de 80 a.C., proveniente de Cartagena (Carthago Nova), Espanha, e a segunda de Pompeia, um século e meio depois (entre 62 e 79 d.C.). Comecemos pela mais antiga:
M(arcus) Puupius M(arci) l(ibertus) / Sex(tus) Luucius / Sex(ti) l(ibertus) Gaep() / M(arcus) Prosius M(arci) l(ibertus) / N(umerius) Titius L(uci) l(ibertus) Nu() / C(aius) Vereius M(arci) l(ibertus) / Antioc(hus) Bruti L(uci) s(ervus) / El(euterus?) Terenti C(ai) s(ervus) / P(h)ilemo Aleidi L(uci) s(ervus) / Alex(ander) Titini L(uci) s(ervus) / Acerd(o?) Sapo(ni) M(arci) s(ervus) / mag(istri) pilas III et / fundament(a) ex / caement(o) faci(undas) / coeravere
Juntaram-se os magistrados Marco Púpio, liberto de Marco, Sexto Lúcio, liberto de Sexto, Marco Prósio, Liberto de Marco, Mumério Títio, Liberto de Lúcio, Nu.. Caio Verêio, Liberto de Marcos, Antíoco, escravo de Bruto, Eleutero (livre), escravo de Caio Terêncio, Pilemo, escravo de Lúcio Aleido, Alexandre, escravo de Lúcio Titino, Acerdo Sapo, escravo de Marcos, para que fossem feitas três colunas e as fundações de cimento (Tradução nossa).
Referências: CIL 02, 03434 = CIL 02, 05927 = CIL 01, 02271 (p.1104) = HEp 2009, 00257 = AE 2016, +00849.
Data: 100 – 51 a.C.
Local: Carthago Nova, Hispania Citerior.
Dimensões: (87) x 38 x 37.5 cm; 3pés por 21 dedos (digiti), linhas de1,5 dedos.
Foto: EDCS - Clauss Slaby
Todos os mencionados são escravos ou libertos, alguns com nomes gregos e provável ligação com o comércio no Mediterrâneo Oriental. Alguns estudiosos pensam que se referem a três pilares e à fundação de cimento de uma estrutura portuária. Seriam empresários ligados ao comércio a melhorar a infraestrutura do porto. Outros, como nós, propendemos pela interpretação religiosa por privilegiar o lugar de achado da inscrição, em um morro (Castillo de la Concepción), em templo dedicado a Esculápio (Políbio, X, 1, 10, 8 νεὼς Ἀσκληπιοῦ). Como quer que seja, importa a atuação coordenada de subalternos enriquecidos em atuação edilícia com inscrição celebrativa monumental.
A outra inscrição, recém-descoberta, foi achada em tumba bem preservada de um liberto municipal em Pompeia:
M(arcus) Venerius coloniae / lib(ertus) Secundio aedituus / Veneris Augustalis et min(ister) / eorum hic solus ludos Graecos / et Latinos quadriduo dedit
Marco Venério Secúndio, liberto da colônia, funcionário do templo de Vênus, Augustal e secretário deles. Este sozinho ofereceu espetáculos gregos e latinos por quatro dias (Tradução nossa).
Referência: Kantor, 2021-07-17 = EDCS-81100001.
Data: Século I d.C. Local: Pompeia.
Foto: EDCS – Clauss Slaby.
A confortável tumba preserva o corpo mumificado de Marco Venério Secundo, falecido idoso e sem sinais de lesões durante a vida. Ser inumado revelaria origem estrangeira? Não se sabe, mas é algo mesmo incomum. A inscrição muito bem cuidada e com acabamento primoroso revela não só o custo como o gosto sofisticado. Com grafia erudita, apenas eorum (deles) trai oralidade ao não mencionar quem seriam eles. Supomos, como outros estudiosos, que seja “secretário dos Augustais”. A opulência aparece, ainda, no fato de ter oferecido jogos gregos e latinos por quatro dias. Podem ser espetáculos em língua grega ou ao estilo grego. Hic também chama a atenção, “este”, pois dedit (deu) na terceira pessoa já esclarece o sujeito da frase. Hic é mais usual como “aqui”, o que poderia indicar a cidade de Pompeia, à qual servira.
Ambas as inscrições de subalternos enriquecidos provêm de pessoas em situação liminar, em mutação: trata-se de inscrições de subalternos em busca de ascensão social. Mostram elites romanas a aceitar subalternizados, quem se enriquecia e oferecia benefícios coletivos. Indicam, também, como essa ascensão social podia servir para reforçar as hierarquias e as exclusões. A chegada ao poder, na Grã-Bretanha, de Rishi Sunak, primeiro homem definido como de cor, de família do subcontinente asiático, hindu e que nunca poderia ser considerado parte da elite tradicional britânica, mostra que marcas de subalternidade não impedem o enriquecimento e a defesa do status quo. Multimilionário e conservador, Sunak, como tantos indivíduos marcados pela subalternidade e os aqui estudados em época romana, traz-nos um alerta. A defesa da desigualdade e de uma ordem social injusta, muitas vezes, pode vir de antigos subalternizados. Mensagem tanto mais importante, no momento, no mundo e no Brasil, em que os perdedores sociais abraçam o fascismo.
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