Por Anita Fattori, Doutoranda em História Social, Universidade de São Paulo.
“Puzur-Ishtar se casou com Ishtar-Lamassī, filha de Assur-nada, na condição de esposa secundária e ele deve levá-la com ele em sua jornada onde quer que seja. Entretanto, ele deve trazê-la de volta para Kanesh. Se ele a deixar, ele deve pagar 2,5 quilogramas de prata; se for ela quem o deixar, ela deve pagar 2,5 quilogramas de prata. Ademais, além de sua esposa principal na cidade de Assur, ele não deve tomar mais ninguém como esposa. Assur-nemedi, Annina e sua mãe a entregam (como esposa). Annali, filho de Al-tab, e Mannum-balum-Assur, filho de Assur-sululi, são testemunhas” (Tradução livre. Praga I 490)
O texto que você acabou de ler é um contrato de casamento muito parecido com os que conhecemos nos dias de hoje: temos os nomes dos noivos, as cláusulas do regime contratado e as testemunhas que garantem a sua validade. Entretanto, ele não foi assinado em um papel, mas sim gravado há mais de 4 mil anos nesse tablete de argila, fazendo uso de uma língua, o acadiano, e um sistema de escrita, o cuneiforme, que não usamos mais:
Esse contrato foi assinado no início do segundo milênio antes da nossa era, no contexto do comércio de longa distância do Antigo Oriente Próximo. Uma grande rede comercial que se formara foi protagonizada por mercadores assírios, que deixavam suas famílias em Assur, no norte da Mesopotâmia, e partiam em direção à Anatólia central, fixando-se por longos períodos em diferentes lugares, com destaque para a cidade de Kanesh, hoje Kültepe, na Turquia.
Em relação ao conteúdo desse contrato, quais aspectos nos chamam atenção? De início sabemos que ele trata de um casamento misto entre uma mulher de Kanesh, na Anatólia central, e um homem assírio de Assur. Além disso, essa mulher, Ishtar-Lamassī, é tomada sob o status de segunda esposa do mercador Puzur-Ishtar.
Como regra geral, os códigos mesopotâmicos que conhecemos, como o famoso Código de Hammurabi, são claros em relação aos casamentos: a monogamia é a regra. Entretanto, notamos que alguns costumes referentes ao direito familiar são adaptados a esse cenário de comércio, onde encontramos casos de bigamia.
Alguns mercadores já eram casados em Assur e, ao se estabelecerem em Kanesh, ou em qualquer outro lugar da Anatólia, podiam tomar uma segunda esposa. A primeira esposa recebia o status de esposa principal, a assatum, já a segunda esposa era considerada secundária em relação à primeira, recebendo o status de amtum. Podemos chamar esse quadro de uma ‘bigamia relativa’, já que eles só podiam viver com uma esposa de cada vez, ou seja, não podiam ter mais de uma esposa no mesmo lugar, nem com o mesmo status. Além disso, era expressamente proibida a realização de um terceiro casamento, evitando, assim, um cenário de poligamia.
Além dos aspectos jurídicos dessa sociedade, por meio da análise documental também podemos obter algumas informações sobre como essas pessoas viviam. Por meio de contratos de casamento, divórcio, empréstimo e cartas podemos conhecer e repensar como foi a vida das mulheres no passado, especialmente a vida das mulheres que viviam na Anatólia, figuras pouco debatidas pelos estudos do período.
O primeiro trecho do documento acima evidencia que uma esposa secundária estava incumbida de acompanhar seu marido em seus deslocamentos pela Anatólia. Além disso, também sabemos que as esposas secundárias eram responsáveis por tomar conta das casas, filhos e bens do marido durante sua ausência. Em um primeiro momento podemos pensar que obedeciam silenciosamente à ordem patriarcal, mas por meio da documentação sabemos que muitas vezes relutavam, reclamando ou mesmo se recusando a acompanhá-los nas constantes viagens para locais desconhecidos.
Em seguida, nesse mesmo contrato, podemos verificar a existência de uma cláusula de divórcio. Esse trecho é especialmente importante, pois nos mostra uma igualdade jurídica entre homens e mulheres nesse aspecto: tanto os homens quanto as mulheres poderiam se divorciar e ambos sob as mesmas penalidades, no caso acima, por exemplo, qualquer uma das partes que iniciasse um divórcio deveria pagar 2,5 quilos de prata.
O divórcio parece ser o final previsto para esses casamentos e acontecia geralmente de forma pacífica, quando os maridos encerravam suas carreiras como mercadores na Anatólia e retornavam para Assur. Nesse momento o destino dessas esposas e seus filhos era estabelecido: elas recebiam a indenização do divórcio e poderiam iniciar uma nova vida. Dentro dessa lógica não é de se espantar que não fossem produzidos testamentos a favor das esposas secundárias. Tais testamentos podem ter existido, mas não os conhecemos. Entretanto, algumas situações inesperadas poderiam acarretar um destino trágico para essas mulheres, como a morte do marido antes do encerramento dessa relação, a exemplo de uma mulher chamada Kunnaniya.
O marido de Kunnaniya morre repentinamente na Anatólia. Sozinha, ela percorre um trajeto de mais de mil quilômetros até Assur para confrontar a família do falecido e garantir parte de seus bens: a propriedade de sua casa em Kanesh e uma indenização para criar seus filhos. Sem sucesso na negociação, ela perde tudo e, ao retornar, descobre ainda que seus bens foram roubados. Apesar da pouca documentação sobre esse caso e de não sabermos o desfecho final de Kunnaniya, conhecemos uma carta que escreveu para sua irmã: “Eu não aguento mais, eu vou morrer. Eu não tenho saída” (KTH 5).
Um outro aspecto da vida dessas mulheres pode ser percebido nas entrelinhas dos textos que tratavam do comércio. Além de realizarem pequenos investimentos de maneira independente, as esposas secundárias aparecem junto aos seus maridos em contratos de empréstimo. Esse cenário pode nos mostrar sua participação ativa nos negócios familiares, mas também nos lança uma dúvida: seriam essas mulheres colocadas como codevedoras não por uma questão de parceria comercial, mas por figurarem como garantia do pagamento da dívida?
Para essas mulheres, tornar-se uma esposa era vantajoso, pois tinham a garantia de um teto, comida e roupa. Era uma certeza de sobrevivência, que poderia durar anos e garantiria posteriormente um meio de recomeçar suas vidas. Diferentemente das esposas principais assírias, as esposas secundárias parecem estar condicionadas a uma maior vigilância patriarcal. Entretanto, elas negociavam seus espaços de atuação: negando-se a realizar viagens, viajando sozinhas para buscar seu direito à sobrevivência, pondo-se de forma igualitária em relação ao divórcio e participando das práticas comerciais. Podemos concluir que a subalternidade das segundas esposas não implica em passividade e que, a sua maneira, negociavam seus espaços de atuação.
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