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Os romanos pixavam?

Por Marcio Monteneri, Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo.


Essa é uma pergunta que quase sempre me fazem quando falo sobre minha pesquisa sobre os grafites de Óstia, o antigo porto de Roma. A curiosidade é compreensível: hoje, paredes marcadas por palavras e desenhos são uma forma de comunicação urbana presente em muitas cidades, e é natural querer saber se os romanos também usavam os muros para se expressar. Responder a essa pergunta, entretanto, exige antes entender o que chamamos de grafite e o que chamamos de “pixo” nos dias atuais.


O grafite contemporâneo é uma manifestação cultural urbana presente em espaços públicos como muros, viadutos e fachadas (Fig. 1). Essas intervenções, feitas com tinta spray ou outros materiais, costumam exibir letras elaboradas, cores vibrantes e desenhos complexos. Hoje o grafite é amplamente reconhecido como expressão artística e social, utilizada por muitos artistas para criticar a sociedade e dar visibilidade a grupos marginalizados. Ainda assim, continua sendo considerado ilegal quando realizado sem autorização.


Fig. 1 Grafite (já apagado) de Eduardo Kobra. Av. Rebouças, 167 - Consolação, São Paulo - SP. Fonte: Site oficial do artista. https://www.eduardokobra.com/projeto-sp/63/welcome-to-brazil-green-pincel
Fig. 1 Grafite (já apagado) de Eduardo Kobra. Av. Rebouças, 167 - Consolação, São Paulo - SP. Fonte: Site oficial do artista. https://www.eduardokobra.com/projeto-sp/63/welcome-to-brazil-green-pincel

A pixação, com “x”, é uma forma visualmente mais agressiva de intervenção urbana (Fig. 2). Feita com tinta preta, em locais de difícil acesso e com traços quase ilegíveis para quem não conhece o estilo, funciona como uma linguagem com códigos próprios, voltada sobretudo aos próprios pixadores. O conteúdo pode variar, mas o que predomina hoje são as chamadas tags, assinaturas coletivas ou individuais dos pixadores. A prática pode ser vista como um ato de resistência e apropriação de espaços urbanos ou simplesmente como vandalismo — dependendo de quem olha. Pela lei, é crime ambiental, sujeito a detenção e multa.



Essas duas práticas — grafite e pixo — têm em comum o uso da parede como meio de comunicação e de disputa simbólica por visibilidade. Ambas expressam algo sobre quem escreve e sobre a cidade em que estão inseridas. E é justamente por isso que a pergunta “os romanos pixavam?” é interessante: ela projeta sobre o passado um fenômeno muito atual, e nos ajuda a pensar o que significava escrever em muros há dois mil anos.


Na Antiguidade romana, o grafite era algo bem diferente. Eram inscrições ou desenhos feitos com objetos pontiagudos sobre reboco, pedra ou madeira, geralmente discretos e visíveis apenas de perto (Fig. 3). O termo "grafite" que os estudiosos utilizam desde o século XIX para designar essa prática, a partir do italiano graffiare, “riscar”, se refere ao uso do estilete (em latim, graphium) utilizado pelos romanos para escrever em tabuinhas enceradas ou riscar na parede. Os grafites antigos podiam registrar nomes, piadas, declarações de amor, mensagens religiosas, anotações comerciais ou desenhos de pessoas, animais e monumentos. Esses grafites não apareciam apenas em espaços públicos: em Óstia, por exemplo, a maioria foi encontrada no interior de edifícios públicos e privados, e não em ruas ou fachadas.


Fig. 3 Grafite representando um gladiador. Casa dei Ceii, em Pompeia (I.6.15). Foto: Julio Cesar Magalhães de Oliveira
Fig. 3 Grafite representando um gladiador. Casa dei Ceii, em Pompeia (I.6.15). Foto: Julio Cesar Magalhães de Oliveira

Além dos grafites, havia também as inscrições pintadas (dipinti), feitas com carvão ou tinta, geralmente por profissionais (Fig. 4). Essas costumavam anunciar candidaturas políticas ou espetáculos públicos. Nenhuma dessas formas de escrita era proibida: não existiam leis que vetassem escrever nas paredes. Fazer um grafite, na Roma antiga, não era crime nem vandalismo — era simplesmente uma prática cotidiana de comunicação urbana.


FIg. 4 Anúncio pintado. Parede da Via della Abbondanza em Pompeia. Foto: Julio Cesar Magalhães de Oliveira
FIg. 4 Anúncio pintado. Parede da Via della Abbondanza em Pompeia. Foto: Julio Cesar Magalhães de Oliveira

Mesmo assim, algumas inscrições antigas podem ser lidas como atos de contestação. Não por serem ilegais, mas porque, em certos contextos, funcionavam como instrumentos de expressão popular, capazes de desafiar o discurso oficial. Um exemplo notável vem do relato de Plutarco sobre os irmãos Graco, dois políticos do final do século II a.C. que tentaram reformar a estrutura agrária de Roma.


Tibério Graco, tribuno da plebe em 133 a.C., propôs limitar o uso das terras públicas pelos grandes proprietários e redistribuir o excedente aos camponeses pobres. A medida desagradou a elite senatorial, mas conquistou forte apoio popular. Segundo Plutarco, foi o próprio povo (αὐτὸς ὁ δῆμος) quem mais estimulou Tibério, escrevendo em pórticos, paredes e monumentos para exigir a devolução das terras aos pobres (Vida de Caio Graco, VIII, 10). Plutarco diz que Tibério foi estimulado por γραμμάτων (inscrições, letras ou mensagens), que foram καταγραφομένων (registradas, escritas ou anotadas) nas paredes, pórticos e monumentos. O grego que Plutarco usa não especifica a técnica dessas intervenções. De todo modo, essas inscrições anônimas indicam a capacidade do povo de pressionar a elite — um exemplo de ação política que partia de baixo.


Anos depois, Caio Graco, irmão de Tibério, tentou levar adiante reformas ainda mais ambiciosas. Em 121 a.C., foi morto junto com milhares de apoiadores, após o Senado decretar estado de sítio. Lúcio Opímio, cônsul responsável pela repressão, mandou construir um templo dedicado à Concórdia — gesto que revoltou a maioria (οἱ πολλοί), mais até do que as próprias execuções. Ao erguer o templo, Opímio celebrava um triunfo sobre os cidadãos que havia mandado matar. Em meio a essa violência, alguém escreveu (παρενεγράφη), durante a noite, no novo templo da Concórdia:


“A Discórdia construiu este templo à Concórdia!” (Vida de Caio Graco, XVII, 8-9)


A frase, carregada de ironia, é uma refutação incisiva da provável versão “oficial” do Senado sobre a violência, parodiando com precisão a fórmula dedicatória padrão dos templos. O grafite, registrado por Plutarco em grego, teria reproduzido a inscrição dedicatória: L. Opimius fecit. Assim, seria lido: Aedem Concordiae Discordia fecit — ou talvez apenas Discordia fecit. O ataque a esse espaço não foi aleatório: tratava-se de um gesto contra um símbolo poderoso. Plutarco a interpreta claramente como uma manifestação “popular”, expressão da visão da maioria (οἱ πολλοί).


A técnica utilizada na inscrição deixada no templo da Concórdia é incerta. O verbo grego empregado por Plutarco, παρεγγράφω, é neutro quanto ao modo de execução e significa apenas “foi escrito”. Literalmente, quer dizer “escrever ao lado” ou “anotar junto de”, podendo indicar tanto uma escrita com tinta (dipinti) quanto uma inscrição sulcada (graffito). O tradutor da Loeb, Bernadotte Perrin (p. 239), verteu o termo como carved (“esculpido”, “entalhado”), o que sugere um grafite. Robert Morstein-Marx prefere uma forma mais neutra, “alguém escreveu”. Já Tom Hillard, embora também use carved, observa que o texto pode ter sido feito com tinta ou carvão — materiais rápidos, visíveis e acessíveis.


Os relatos de Plutarco mostram que as paredes também podiam ser um lugar de disputa simbólica. Se pensarmos bem, esse gesto tem muito em comum com o pixo moderno: a escolha do lugar (um templo, uma fachada, um muro visível), a autoria anônima, a crítica à ordem estabelecida e o risco de quem escreve. Ocorre que a inscrição do templo da Concórdia possivelmente trata-se de uma inscrição pintada e não de um grafite inciso.


A maior parte dos grafites que chegaram até nós, de fato, não tem caráter subversivo. Raramente se enquadram na categoria de “comunicação de rua” contestatória, cujas mensagens precisavam ser escritas de forma rápida e discreta. Parece, então, que não há paralelos exatos para nossos exemplos entre os vestígios preservados. Em alguns contextos, porém, certas intervenções nas paredes romanas podem ser comparadas à pixação moderna, não por sua forma, mas por sua função crítica e subversiva.


Responder à pergunta “os romanos pixavam?” exige, portanto, ir além da aparência das letras riscadas no reboco. O que importa é o uso do espaço público como meio de expressão e a possibilidade de falar sem permissão. Quando um habitante comum, em silêncio e às escondidas, grava uma frase que desafia o poder, ele transforma o muro em um campo de luta. E só conseguimos perceber isso nas inscrições antigas quando as olhamos em seu contexto — histórico, social e espacial.


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