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A Peste Antonina e a Covid-19

Atualizado: 17 de ago. de 2021

Por Julio Cesar Magalhães de Oliveira, Universidade de São Paulo.


Maquete da Londres romana com vista de uma ponte sobre o Tâmisa, local onde foi encontrado o amuleto de Demétrio. Museu de Londres. Foto: Steven Johnson (Wikimedia Commons).

Em 11 de março de 2020 a Organização Mundial da Saúde declarava o estado de pandemia da Covid-19. Um ano depois, o mundo ainda convive com a doença e suas consequências econômicas e sociais. O Brasil vive seu maior pico de infecção até aqui, com uma média diária de 3000 mortos e os sistemas de saúde e funerário beirando o colapso em vários estados da federação. Vivemos a angústia de sermos contaminados, de vermos nossos parentes e amigos perderem a vida, o cansaço dos que estão há muito confinados, a ausência do abraço e do afeto. Para muitos, a tudo isso ainda se somam o medo ou a realidade da perda do emprego e da fome e a falta de perspectivas.


A pandemia de Covid-19 não foi propriamente uma surpresa para os epidemiologistas, mas foi sem dúvida um choque para muitos de nós. Nós nos acostumamos com a eficácia das políticas de vacinação que erradicaram muitas doenças que, no passado, haviam sido fatais. Nós nos esquecemos, por isso, que doenças infecciosas, epidemias e mesmo pandemias foram uma constante na história humana. Não é por acaso que a história das epidemias se tornou objeto de interesse no último ano. Ela, de fato, pode nos ajudar a pensar o contexto que vivemos de uma perspectiva mais ampla. Eu mesmo já escrevi neste blog sobre a Praga de Justiniano no século VI. Neste post, gostaria de discutir uma outra pandemia que afetou o Império Romano entre as décadas de 160 e 180 d.C.: a Peste Antonina.


Essa peste teve sua origem na fronteira com o Império Persa e penetrou no Império Romano no inverno de 165-166 durante o cerco romano à cidade de Selêucia, junto ao rio Tigre, no atual Iraque. O historiador Amiano Marcelino, que viveu mais de duzentos anos depois dos acontecimentos, narra o episódio como uma maldição provocada por um sacrilégio:


“Quando esta cidade foi invadida pelos generais de Vero César [...], a estátua de Apolo Comaeus foi arrancada de seu lugar e levada para Roma [...]. Diz-se que, depois que essa mesma estátua foi carregada e a cidade queimada, os soldados ao saquearem o templo encontraram uma fenda estreita; eles então ampliaram a fenda na esperança de encontrar ali algo valioso; mas de uma espécie de santuário, fechado pelas artes ocultas dos caldeus, irrompeu o germe daquela pestilência, que depois de gerar a virulência de doenças incuráveis, no tempo do mesmo Vero e de Marco Antonino poluiu tudo de contágio e morte, desde as fronteiras da Pérsia até o Reno e a Gália.” (Amm. Marc. 23, 6, 26).


A narrativa de Amiano parece ter origem em um boato (“diz-se que”) com o qual os romanos procuraram compreender as razões de sua desgraça. A reação é comparável à proliferação de boatos os mais diversos que assistimos no início da pandemia atual, como a suposta fabricação em laboratório do vírus. Nos dois casos, estamos diante da busca por explicações para algo que foi sentido como uma surpresa e para o qual havia muito poucas respostas (com a diferença que hoje, pelo menos, sabemos o que são os vírus e como eles nos afetam).


O historiador Cássio Dio, que, ao contrário de Amiano, viveu à época da peste, lembra em sua História Romana (72, 14) que, apenas em Roma, morriam duas mil pessoas por dia. Outro contemporâneo, o famoso médico Galeno, descreveu as características da doença: “erupções de cor preta ou púrpura escura que após alguns dias secam e se desprendem do corpo; pústulas ulcerativas por todo o corpo; diarreia, febre e sensação de aquecimento interno nas pessoas afetadas; em alguns casos há sangue nas fezes do infectado, perda da voz e tosse com sangue devido às feridas que aparecem no rosto e áreas próximas; entre o nono dia do aparecimento das erupções e o décimo segundo dia, a doença se manifesta com maior violência e é quando produz a maior taxa de mortalidade” (Método terapêutico 5, 12). Não é possível ter certeza de qual era a doença, mas a partir dessa descrição os historiadores concluem que se tratava provavelmente da varíola, doença hoje erradicada graças à vacinação.


Durante muito tempo os historiadores atribuíram à Peste Antonina a principal responsabilidade pelo declínio populacional no final do século II. Hoje, porém, muitos estudiosos tendem a enfatizar outros fatores. Para Collin Elliot, por exemplo, a gravidade da doença no Egito é muito mais uma consequência do que a causa de uma crise populacional provocada por uma longa seca, devastação da agricultura, conflitos sociais e pressão fiscal que levou os mais pobres à desnutrição e à migração (com isso espalhando o vírus devastador). Os contextos históricos são com certeza muito diferentes, mas hoje vemos o quanto os estragos provocados por uma pandemia dependem também de condições sociais e são sempre os mais pobres os que mais sofrem.


Um testemunho arqueológico de um imigrante, embora não dos mais pobres, nos permite ter uma ideia do impacto provocado pela pandemia. Em 1989, uma placa de bronze gravada foi descoberta em Londres no leito do rio Tâmisa. Tratava-se de um amuleto de Demétrio, um gramático vindo da parte grega do Império. O amuleto é datado do fim da década de 160 d.C., isto é, do auge da pandemia. No texto grego, publicado por R. S. O. Tomlin, estava escrito:


Abrai Barbasô Barbasôch Barbasôth. + euliôr, + athemorphi, manda embora o barulho discordante da peste furiosa, transportada pelo ar, +tanychizon, +nidrolees, dor infiltrante, espírito pesado, destruidora de carne, derretendo, das cavidades das veias. Grande Iao, grande Sabaoth, protege o portador. Febo do cabelo não tosado, arqueiro, afasta a nuvem da peste. Iao, deus Abrasax, traz ajuda. Febo certa vez ordenou aos mortais que se abstivessem de +chileôn. Senhor Deus, cuida de Demétrio.”


O texto nos dá uma ideia do terror provocado pela pandemia, dos medos e incertezas que acompanhavam o portador desse amuleto. Demétrio não hesitou em recorrer à proteção de todos os deuses possíveis, incluindo aí o deus dos judeus (grande Sabaoth), uma figura mencionada em textos gnósticos (Abraxas) ou o deus grego Febo (Apolo). Demétrio se refere à doença como uma “peste furiosa transportada pelo ar”, uma nuvem que vem não se sabe de onde e ataca não se sabe como.


Nós, que vivemos nossos próprios traumas e angústias neste ano da peste de 2021, podemos compreender um pouco do que Demétrio sentia. Essa identificação com seu sofrimento nos lembra que, de certo modo, não estamos sozinhos, que o que vivemos não é único. Mas há uma diferença. Nós, pelo menos, sabemos o que nos afeta, sabemos o que poderia ser feito e sabemos quem preferiu uma estratégia institucional de propagação do vírus às políticas de restrição de circulação e negligenciou a compra de vacinas quando elas ainda estavam disponíveis.


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