Por José Knust, Instituto Federal Fluminense, Campus de Macaé.
A maior parte da população do Mediterrâneo antigo era composta por pessoas que tinham como atividade primária de suas vidas o trabalho na terra e a criação de animais. Contudo, a história dessa vida rural no mundo antigo nos é muito fugidia. Por conta dos vestígios desse passado que chegaram até nós e dos prismas ideológicos e teóricos que predominaram na análise desses vestígios, por muito tempo uma verdadeira história vista de baixo da maior parcela da população da Antiguidade esteve distante das possibilidades da historiografia. Nas últimas décadas, contudo, uma série de inovações metodológicas e teóricas permitiu um grande avanço nessa perspectiva. Nesse texto, usando o caso do campesinato na Península Itálica como exemplo, pretendo indicar como transformações na arqueologia ajudaram nisso.
Desde o Renascimento, uma das práticas mais difundidas do antiquarismo classicista era a busca por localizar topograficamente locais mencionados em textos da tradição clássica. No século XIX, essa prática ganhou métodos mais sistemáticos e se tornou o ponto de partida para o desenvolvimento do que hoje chamamos de arqueologia de superfície – isto é, levantamentos de vestígios arqueológicos sem a realização de escavações. Após a Segunda Guerra Mundial, no contexto da chamada revolução verde, a agricultura italiana passou por um processo intenso de modernização, incluindo o uso de máquinas pesadas para arar a terra, o que, com certa frequência, revelava vestígios arqueológicos – abrindo uma nova fronteira para a arqueologia de superfície.
Esse tipo de abordagem logo se mostrou importante para o estudo da realidade rural. Como se tratava de uma prática mais extensiva de análise do território, a arqueologia de superfície era capaz de produzir dados sobre a ocupação de toda uma região. E como é possível ter uma ideia da ocupação desses sítios a partir da datação dos materiais encontrados (a cerâmica é especialmente importante nisso), era possível também estabelecer dados de variação temporal dessa ocupação. O projeto pioneiro a fazer isso na Itália foi o South Etruria Project, da British School at Rome, entre os anos 50 e 70. Nas décadas seguintes, inúmeros projetos foram desenvolvidos por instituições italianas e estrangeiras em diversas regiões da Itália.
Esses projetos tiveram enorme impacto sobre o estudo do campesinato na Itália antiga porque recolocaram esse grupo social como parte relevante da história romana. Muitos autores antigos, como Plutarco e Apiano, trataram a crise dos irmãos Graco, no final do século II a.C., como resultado de um contexto de declínio demográfico dos cidadãos. Isso serviu como ponto de partida para a construção, por historiadores modernos, de modelos sobre uma “crise do campesinato livre” associado ao desenvolvimento da escravidão rural na Itália romana entre os séculos III e I a.C. Os resultados dos levantamentos de superfície foram a peça mais importante na contestação desses modelos.
A maioria desses estudos reginais convergiam na informação de que ao longo desse período a ocupação do campo por pequenos sítios arqueológicos sem sinais de luxo havia se intensificado. Isso foi predominantemente interpretado como sinal de um crescimento no número de pequenas fazendas camponesas. Com isso, os camponeses livres deixaram de ser encarados pela historiografia como uma espécie de reminiscência anacrônica no período tardo-republicano e imperial. A partir daí, maior importância foi dada à sua vida socioeconômica e ação política.
Além da capacidade de identificar tendências quantitativas e qualitativas da história do assentamento rural, os levantamentos de superfície nos dão mais algumas informações fundamentais para entender a vida dos camponeses da Itália antiga. A presença de diferentes tipos de materiais, como moedas e diferentes tipos de cerâmica, permite vislumbrar os tipos e a amplitude das redes de conexão em que essas pessoas estavam imersas. A variação na densidade da presença desses materiais nos permite apontar tendências históricas, também muito relevantes para conhecer a vida desses sujeitos históricos.
Para além desses levantamentos de superfície, os projetos regionais desenvolvidos desde a década de 60 trouxeram outra novidade importante ao promoverem a escavação de pequenos sítios rurais. Até então, os poucos sítios arqueológicos em contextos rurais que eram objeto de projetos de escavação eram as luxuosas propriedades da elite romana, as uillae. É bem verdade que até hoje predominam as escavações deste tipo de sítio, mas as escavações pioneiras dos projetos regionais abriram uma porta fundamental para o estudo do campesinato.
Um projeto capitaneado pela Universidade da Pensilvânia na década passada e intitulado Roman Peasant Project (dirigido por Kim Bowes) talvez seja o resultado mais interessante dessa porta aberta. Eles promoveram a escavação de alguns sítios identificados por um levantamento de superfície na região de Cinigiano, na Toscana, e que haviam sido classificados como pequenos sítios rurais. Até então, os grandes projetos regionais se baseavam numa ideia tradicional do que seria a vida camponesa e interpretavam cada sítio desse tipo como vestígio de uma casa de uma família camponesa isolada, onde se viveria e trabalharia no limite da subsistência por gerações e gerações sem muitos contatos com o “mundo exterior”.
As escavações do Roman Peasant Project logo colocaram essa interpretação à prova. Os pesquisadores identificaram estruturas arquitetônicas de tipos diversos, muitas voltadas apenas para determinadas atividades produtivas, sem espaços de habitação e com indícios de uso compartilhado por diferentes famílias camponesas. Isso mostrava que a geografia da vida cotidiana dos camponeses ia muito além do mero espaço de uma casa-fazenda isolada. Além disso, essas estruturas eram utilizadas em média por apenas duas ou três gerações, mostrando também uma mobilidade camponesa na média e longa duração. Por fim, a presença de indícios de conexões mercantis (como ânforas de determinados tipos e moedas) corroborava as críticas à imagem tradicional de camponeses isolados.
Nas últimas décadas, como muito bem exemplifica o projeto da Universidade da Pensilvânia, a perspectiva de fazer uma história dos subalternos foi constituindo novas questões e, consequentemente, novos métodos e novas interpretações. O desenvolvimento de reavaliações de escavações antigas e a realização de novas escavações dentro das balizas estabelecidas por esse projeto é um dos grandes caminhos para o estudo do campesinato na Itália Antiga nas próximas décadas. Abre-se a partir daí todo um campo para construir uma nova compreensão da história do campesinato antigo.
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