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Escravos, gladiadores, libertos, turba: o protagonismo subalterno nas disputas das elites romanas

Por Pedro Paulo A. Funari, Unicamp.


Via Ápia antiga, onde se deu o assassinato de Clódio. Foto: Paul Hermans/Wikimedia Commons.

A variedade de grupos sociais subalternizados no mundo antigo não deixa de questionar o estudioso: qual o seu protagonismo? Tanto em termos individuais, como coletivos, a capacidade de ação dessas pessoas tem gerado discussão. Moses Finley propunha que havia tantos termos gregos e latinos para essas posições subordinadas que não havia ação coletiva significativa, pouco ou nada colocaria em cooperação pessoas de status jurídico tão diverso entre si. Outros estudiosos propuseram que, a despeito dessa constatação de variedade, podia haver protagonismo popular e isto poderia ser mesmo encontrado em leitura a contrapelo da tradição textual erudita e elitista predominante. Este é o caso de duas obras antigas, uma de Cícero, de menos difícil acesso, e outra, o Comentário de Ascônio, bem menos conhecido, ambos reunidos e divulgados de recente.


A publicação do discurso de Cícero (106-43 a.C.) em defesa de Milão (52 a.C.) (Cícero, M.T. Em defesa de Milão de Cícero. Tradução, introdução e notas de Marlene L.V. Borges, revisão técnica de Adriano Scatolin. São Paulo, Assimetria, 2021) vem em boa hora para tratar de um aspecto nem sempre evidente: o protagonismo subalterno e suas contradições e limites. Hoje, no mundo e no Brasil, o protagonismo subalterno tem tanto sobressaído, como sido objeto de reações repressivas, nacionalistas, xenófobas, homofóbicas ou misóginas. Só isso já daria relevância à violência presente no julgamento de Milão. De maneira mais específica, essa publicação permite discutir o protagonismo subalterno e seus limites, mas também seu potencial, em Roma antiga e hoje também, claro.


No livro, Marlene L.V. Borges acrescenta, ainda, o Comentário de Ascônio (9 a.C.- 76 d.C.) sobre o discurso, sempre com o original latino e tradução. Essa é uma iniciativa importante, pois toda tradução esconde, tanto quanto revela, ao ter que usar termos modernos, nem sempre próximas aos sentidos do original. A introdução trata dos mais variados aspectos: recepção, fontes para os eventos, fatos anteriores, contexto sociopolítico, o crime e os eventos subsequentes, a oratória de Cícero e seu contexto, a divisão do discurso em sete partes, percurso argumentativo do discurso, análise do discurso do ponto de vista do status causae, as dificuldades da causa, outros aspectos retóricos, fortuna crítica e critérios de tradução. A trama é complexa, mas pode ser reduzida ao assassinato de Clódio, próximo dos populares, por parte do séquito de Milão, associado aos optimates ou aristocratas, em confronto perto de Bovilas, na via Ápia. Cícero fazia parte da equipe de defesa, em causa disperata ou missão impossível. De fato, Milão foi condenado. Só esse exercício retórico de defesa do indefensável e da morte vale a pena ser lido e mesmo relacionado aos nossos dias.


Um aspecto pode ser ressaltado: o papel contraditório de escravos e libertos. Tanto Cícero como Ascônio são pouco simpáticos a subalternos, mas revelam muito. Cícero louva o que chama de resistência à leviandade da multidão e à temeridade dos degenerados (22 Resistere et leuitati multitudinis et perditorum temeritati), menciona a ameaça de escravos e cidadãos indigentes e criminosos armados (36 seruorum et egentium ciuium et facinorosorum armis ciuis), lugar esconderijo e refúgio de ladrões (50 insidioso et pleno latronum in loco). Ascônio acrescenta que o aristocrata Milão, quando da rixa, ia com grande séquito, uma extensa fila de escravos, entre os quais também havia gladiadores (28 magnum seruorum agmen, inter quos gladiatores quoque erant), que foram os executores do assassinato de Clódio, abrigado em uma taberna. Ascônio informa que Milão libertara esses escravos que executaram Clódio, para que não fossem torturados como testemunhas de status servil (30 manu miserat eos Milo). Acrescenta que o corpo de Clódio chegou a Roma e que enorme multidão dos extratos mais baixos da plebe e de escravos o recebeu com grandes lamentações (28 infirmaeque plebis et seruorum máxima multitudo magno luctu), a mostrar essa solidariedade de subalternos, caracterizada como turba ignorante (28 uulgus imperitum):


“O corpo de Clódio chegou à Cidade antes da primeira hora da noite. Enorme multidão dos extratos mais baixos da plebe e de escravos, com grandes lamentações, circundou o corpo que fora colocado no átrio da casa...Para ali também se dirigiram Tito Munácio Planco, irmão do orador Lúcio Planco e Quinto Pompeu Rufo, neto do ditador Sula por parte de mãe, tribunos da plebe. Sob a instigação destes, a turba ignorante levou para o fórum o cadáver nu e pisoteado, como estava no leito, e o colocou nos rostros, para que pudessem ver os ferimentos” (Comentário de Ascônio, 28, p. 185-187).


O protagonismo de libertos também fica claro. Marco Emílio Filemão é apresentado diante de uma assembleia popular (32 produxerat in contionem M. Aemilium Philomonem, notum hominem, libertum M. Lepidi), assim como fora o liberto Sexto Clódio a comandar o povo (29 populus duce Sex. Clodio scriba corpys P. Clodi in curiam intulit):


“Sob o comando do escriba Sexto Clódio, o povo carregou o corpo de Clódio para o senado e lhe ateou fogo, servindo-se de bancos, tribunas, mesas e livros dos livreiros...A mesma turba (multitudo) clodiana atacou também a casa de Marco Lépido, inter-rei” (Comentário de Ascônio, 29, p. 186-7).


Cícero também menciona a cooperação de subalternos, frente a Cícero e outros aristocratas:


“Eu não quis que meus concidadãos, protegidos por meus conselhos e riscos, se expusessem às armas de escravos e de cidadãos indigentes e criminosos para me defender” (Cícero, Em defesa de Milão, 36, p. 112-113).


Pode concluir-se que escravos, libertos e pobres agiam em contradição, em sua posição subalterna a poderosos, por um lado, mas também como protagonistas. Serviam a seus senhores, até como assassinos, mas também podiam agir em cooperação e como atores políticos de primeira ordem. Ascônio não hesita em chamar um liberto de dux, líder. Esse discurso de Cícero, tão significativo sobre tantos aspectos, também o pode ser para estarmos atentos ao protagonismo de escravos, libertos e pobres. Também por isso vale a pena a leitura desse discurso.


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