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Io Saturnalia!

Atualizado: 25 de ago. de 2021

Por Jonathan Cruz Moreira, mestre em História pela UNIFESP.


O mês de dezembro no Mosaico das Estações e dos Meses de El Jem. O mês é representado por três jovens escravos portando uma tocha, em alusão às Saturnais. Museu Arqueológico de Sousse, Tunísia. Foto: Wikimedia Commons.

Muito se diz sobre as origens da festa do Natal em 25 de dezembro e sua relação com as festividades romanas (em especial as festas em honra a Sol Invictus em 25 de dezembro a partir do século III d.C.), e, de fato, na Roma antiga, meados de dezembro e início de janeiro era um período que compreendia um calendário variado de festas populares, dentre as quais talvez a mais popular (e minha preferida) fosse a Saturnália (ou as Saturnais). A Saturnália, festa em honra ao deus Saturno (assimilado ao Cronos grego), ocorria mais ou menos entre 17 e 23 de dezembro e se iniciava com um sacrifício no templo de Saturno, no sopé do monte capitolino. Em séculos, as tradições mudavam, é claro, mas ao menos desde o século III a.C., o sacrifício comandado por um magistrado seguia-se de um banquete público e de gritos de IO SATURNALIA! Começava a festa que durava dias.


Nela, as elites romanas trocavam a toga por roupas informais e todos, livres ou escravos, usavam o pileus, chapéu característico de escravos libertos. Nesses dias, os negócios públicos e o mercado eram fechados. Uma quantidade maior de vinho era dada aos escravos e as fronteiras entre os grupos sociais, tão marcadas na sociedade romana, se tornavam, por um curto período de tempo, embaralhadas, senão invertidas. Escravos e senhores se tratavam com maior liberalidade, as ruas eram tomadas por foliões que elegiam um rei satírico (saturnalicus princeps), que dava ordens, como se lançar na água, dizer coisas ofensivas sobre si mesmo ou dançar nu, ou carregar alguém nos ombros entre outras brincadeiras (Luciano, Saturnalia, 4).


Havia troca de presentes também. As crianças ganhavam pequenos brinquedos e os adultos trocavam, inicialmente, pequenas velas e estatuetas e, com o tempo, presentes dos mais variados que, como no nosso amigo secreto, nem sempre agradavam. O poeta Catulo (84 - 54 a.C.), por exemplo, reclamava com ironia dos péssimos livros que recebeu de um amigo durante as Saturnais: "Mas, grandes deuses, que horríveis, que execráveis livros mandaste a teu pobre Catulo, para fazê-lo morrer num dia tão belo quanto este das Saturnais!" Catulo, porém, avisava que não deixaria barato, e esvaziaria as livrarias mandando-lhe "venenos" semelhantes (Catulo, Carmina, 14). Não é só você que reclama de ganhar meia no amigo secreto. Além da "suavização" do poder dos senhores, coisas que antes eram mal vistas, como jogos de azar, eram praticados na Saturnália ao ar livre. Segundo o poeta Marcial (Epigrama 14, 1), senadores usavam roupas comuns e chapéus de libertos, enquanto o escravo balançava o copo dos dados sem medo do olhar do Edil.


Essa liberdade, que não sem razão nos lembra bastante alguns aspectos do carnaval (misturados a outros do Natal), correspondia a uma "era de ouro" lendária de Saturno, quando não havia tantas desigualdades e propriedade e todos eram essencialmente iguais. Essa suspensão das hierarquias pode ser compreendida como uma "válvula de escape", como um momento de suspensão das hierarquias para sublinhar fronteiras

sociais e aliviar tensões ao fim de um ano de desigualdades, mas pode ser também compreendida como momento de resistência. Como apropriação das tradições para que contas sejam acertadas e verdades sejam ditas.


O poeta Horácio (65 - 8 a.C.) elabora em seu poema 7 do livro II um diálogo no qual um escravo chamado Davo fala ao seu senhor dizendo que há muito tempo ouve muita coisa e gostaria, também de dizer algumas verdades que, como escravo, tinha medo (Sátiras 2, 7). Seu senhor, o próprio Horácio, responde dizendo que aproveite seu mês de liberdade (Saturnália) e fale! O fictício escravo então começa a refletir sobre o fato de que seu senhor não é em nada melhor que ele. Tido como preguiçoso e bêbado, não é pior que seu amo que, disfarçando com palavras bonitas esconde seus vícios. Apaixonado pela mulher do vizinho, é traído e tentado pelos seus pensamentos. Ele, porém (escravo), não teme a desonra e entra no primeiro bordel quando quer. Tirando seu anel da ordem equestre, seu hábito romano e sinais de distinção, não sobra nada além de mais um escravo. Afinal, quem obedece a um "senhor-escravo" e a outros escravos também é escravo. "Você, por exemplo, que tem o comando sobre mim, está sujeito a outras coisas, como uma marionete que se move por fios que não são seus" (Sátiras 2, 7, 80).


A liberdade da Saturnália, como a liberdade do Carnaval, ainda que de resistência, tem seus limites e, no poema de Horácio, termina quando o senhor pede uma pedra e avisa que se o escravo não sumir, vai ser obrigado a trabalhar com outros escravos na fazenda (Sátiras 2, 7, 115). Talvez seja possível traçar uma linha entre a Saturnália romana e festividades populares europeias com elementos comuns: Os excessos, a bebedeira, a suspensão de fronteiras sociais, um rei dos bobos e, é claro, o acerto de contas. O espírito da Saturnália não é tão distante do nosso espírito do Carnaval e talvez não seja coincidência o medo que muita gente tem da festa popular.


Io Saturnalia, e viva a(s) festa(s) popular(es)!


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