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Foto do escritorRenata Garraffoni

O que pensavam as mulheres no período romano?

Atualizado: 11 de abr. de 2019

Por Renata Senna Garraffoni, Universidade Federal do Paraná.


Já pararam para pensar que sempre que se fala em Império Romano as pessoas imaginam soldados e guerras? Pois é, isso não é à toa. A historiografia moderna, desenvolvida a partir do final do século XVIII e início do XIX, período de expansão territorial europeia, privilegiou o estudo do mundo das guerras, da política e da economia, lugares que raramente as mulheres, na visão desses homens, estariam presentes. Afinal, foram bem poucas as que tiveram suas ações registradas nos documentos, e nem sempre de forma favorável.


Nos anos de 1960, muitos estudiosos passam a querer saber mais sobre o cotidiano das pessoas comuns e suas formas de luta, indo além do dia a dia dos destacados generais ou imperadores. Então, o quadro do mundo romano começa a se alterar e a se tornar mais plural. Essa atitude, junto com as críticas advindas das historiadoras e arqueólogas que passam a atuar mais nas universidades ocidentais a partir da década de 1970 modificam radicalmente os estudos sobre os romanos, abrindo novos campos de investigação, possibilitando, por exemplo, o desenvolvimento da História das Mulheres na Antiguidade.

Trago aqui um exemplo de minha experiência mais recente, inspirado pelos questionamentos dessas estudiosas. Como sempre me interessei pela escrita e a linguagem e sabendo que o auge da escrita latina é o período imperial romano, ao procurar sobre o que as mulheres pensavam e como se expressavam, me deparava com registros como de Amedeo Maiuri, superintendente das escavações de Pompeia por quase quatro décadas. No início dos anos 1950, por exemplo, ao analisar duas pinturas de Pompeia em que mulheres aparecem com instrumentos de escrita afirmou que uma escrevia, no máximo, cartas de amor ao pretendente e a outra tinha uma expressão constrangida por não saber usar o instrumento. O historiador Moses Finley, ao final da década de 1960, publicou, em Aspectos da Antiguidade, o ensaio "Mulheres silenciosas de Roma" em que discute a dificuldade de se estudar mulheres porque essas praticamente não deixaram relatos escritos. O que me intrigava nessas publicações era a negação da capacidade de ação dessas mulheres, mesmo diante das evidências. Se há poucos registros canônicos que chegaram até nós de textos de autoria feminina, isso não significa que nenhuma dominaria a arte da escrita. Afinal, são conhecidos os fragmentos de Safo e Sulpícia, só para citar alguns exemplos, e a própria cultura material nos apresenta evidências de que a escrita estaria também presente entre as mulheres.


Afresco representando uma mulher com instrumentos de escrita: cálamo e tabuinha de cera (Pompeia, c. 50 d.C. Nápoles, Museu Arqueológico Nacional).

Estudiosos e estudiosas passaram a criticar essas abordagens após os anos 1980. J. Portela, por exemplo, no seu artigo "Os rolos das mulheres na Antiguidade Clássica: adereços de cultura ou livros de leitura?" já chamou atenção sobre dois corpus de documentos ainda pouco explorados pelos classicistas: os vasos áticos de figuras vermelhas, no caso da Grécia da época clássica, e os afrescos de Pompeia, no caso de Roma, que apresentam muitas imagens de mulheres retratadas junto a rolos e material de escrita e leitura. Em muitos dos rolos, trechos de poemas estão inscritos. Se, como considera Portela, mulheres eram representadas junto aos mais nobres instrumentos de escrita, faltaria, portanto, investir em mais estudos na área e discutir seus significados simbólicos e práticos. Mesmo que possamos considerar que o universo de alfabetização na Antiguidade fosse mais restrito, é importante salientar que a cultura material apresenta registros em que as mulheres estariam inseridas entre aqueles que dominavam a arte da escrita.


Os estudos das inscrições podem, também, nos dar algumas pistas importantes. Vejam só esses grafites de parede encontrados em Pompeia e traduzidos por Lourdes Feitosa:

1. Amplexus teneros hac si quis quaerit in ur(be)

Expect(at ceras) nulla puella uiri (CIL IV 1796)

[Se alguém procura nessa cidade abraços amorosos,

saiba que nenhuma garota espera carta de homens]


2. Suauis uinaria sitit rogo uos et ualde

Sitit Calpurnia tibi dicti. Val(e) (CIL IV 1819)

[Digo a você: desejo teu doce vinho e desejo muito.

Calpúrnia te diz. Saudações!]


3. Virum uendere nolo meom m(...) (CIL IV 3061)

[não vou vender meu homem...]


4. Venus enim plagiaria est quia exsanguni meum

petit in uies tumultum pariet optet sibi ut

bene nauiget quod et Ario sua rogat. (CIL IV 1410)

[Vênus, efetivamente, é uma desencaminhadora porque deseja

aquele que é do meu próprio sangue, e provocará tumultos nos

caminhos; que ele escolha bem por si mesmo para navegar com êxito, o que também deseja sua amada Arione]


Os três primeiros exemplos foram encontrados nas paredes da Basílica de Pompeia e o quarto na casa de Hércules e podem ser atribuídos a mulheres. Em uma análise que fiz com Funari e logo será publicada ("As vozes das mulheres no início do Principado Romano: Linguagem, discursos e escrita") esses grafites nos chamaram atenção por diferentes motivos. O primeiro, nos faz pensar sobre o fato de Pompeia ser uma cidade próxima ao mar, de trânsito intenso de pessoas de diferentes locais de origem, e alerta aos homens que, se acaso se envolveram com as mulheres locais, não esperem delas respostas a suas cartas, o que em tese contradiz o que afirmou Maiuri!


Já o segundo, fala de desejo: Calpúrnia deseja compartilhar o vinho e deseja muito. Essa questão do vinho é bastante interessante, pois embora muitos argumentem que as mulheres não poderiam tomar vinho baseados em legislações e alguns textos, Marina Cavicchioli tem argumentado que essa ideia não se sustenta quando observamos a cultura material. Em pesquisas recentes, levantou uma série de evidências materiais e tem demonstrado que há uma diversidade de vinhos produzidos entre os romanos e que os mais doces seriam permitidos às mulheres. Portanto, ao desejar o vinho e o amante, essa inscrição nos remete a relação das mulheres com os prazeres da vida, entre eles bebidas alcoólicas que, até muito recentemente, acreditava-se algo fora do universo feminino.


A terceira inscrição, mais fragmentada de todas, pode ser de autoria feminina e indica uma relação entre senhora e escravo ou entre amantes. Afirmar com segurança é difícil dada a sua fragmentação, mas chama atenção pelo fato da decisão de venda poder ser atribuída a uma mulher. Já o quarto e último grafite, que pode ter sido escrito por Arione, e essa, diante da dúvida do amante, o deixaria livre para decidir seu caminho. Vênus, deusa do amor, teria o desencaminhado, então, resta a Arione desejar êxito em sua jornada. O interessante desse grafite é que coube a Arione a decisão de se retirar da relação!

Então, podemos pensar que tanto as pinturas que representam as mulheres com instrumentos de escrita, como esses grafites são indícios que precisam ser observados. Alguns estudiosos mais céticos podem argumentar que há poucas evidências, mas na verdade isso pode se tornar um incentivo para mais pesquisa na área e não um entrave! Afinal, todas essas evidências materiais indicam que essas mulheres tinham desejos, não ficavam à espera da ação masculina: dentro de seus contextos, mesmo que diante das normas patriarcais, elas agiam e cabe a nós trazer isso à tona.


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