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Os motins da fome no Império Romano

Atualizado: 10 de abr. de 2019

Por Julio Cesar Magalhães de Oliveira, Universidade de São Paulo.


Por que as pessoas protestam? Os motivos de descontentamento são muitos, mas nem sempre os descontentamentos resultam em protesto ou revolta. Estudando os motins da fome na Inglaterra do século XVIII, E. P. Thompson se opôs, há já algumas décadas, a interpretações que relacionavam, de forma simplista, o aumento dos preços do pão e os motins, como se esses protestos não fossem nada mais do que “revoltas do estômago”, reações ocasionais e irrefletidas a estímulos econômicos. O problema com essas interpretações não é apenas o fato óbvio de que motins da fome ocorrem quando o preço do pão está caro e as pessoas têm fome. É também que nem sempre as respostas à fome (ou antes, à escassez) são as mesmas em toda parte. Em lugares e culturas diferentes é possível que as pessoas prefiram saídas individuais como a mendicância, o recurso aos deuses ou até mesmo a venda dos filhos.


No Império Romano, a venda de crianças pelas famílias pobres era uma dessas saídas às dificuldades em tempos de escassez. Mas nas cidades, a começar pela capital, multidões podiam também protestar contra as autoridades, os ricos, os padeiros ou os estrangeiros e eventualmente agir contra os responsáveis públicos pelo abastecimento. O que tornava essas revoltas urbanas possíveis era, em primeiro lugar, o sentimento de que o abastecimento das cidades era um direito do povo e um dever das autoridades. Seria possível ver aqui também, como Thompson propôs para o século XVIII, noções arraigadas de direitos e deveres regulando o acesso aos itens básicos da alimentação, noções que poderiam ser descritas como uma “economia moral da multidão”. Mas à diferença do século XVIII inglês, a ação básica das multidões no Império Romano não consistia no estabelecimento de um preço justo, mas na ação punitiva contra as autoridades responsáveis pelo abastecimento, incluindo o lançamento de pedras contra elas, o incêndio de suas casas ou até mesmo seu linchamento.


Venda de pães (afresco da casa de Júlia Félix, em Pompeia - Museu Arqueológico de Nápoles)

O que levava as pessoas à revolta nas cidades do Império Romano era antes o sentimento de injustiça do que a fome em si. A indignação popular era muitas vezes suscitada pela percepção de que a elite de proprietários de terras, abandonando sua obrigação moral de garantir o aprovisionamento do mercado, não hesitava em tirar proveito da situação de dependência na qual se encontrava a maioria da população urbana. Em Antioquia, no século IV, o orador Libânio descreveu muitas vezes como a plebe urbana se voltou contra o conselho municipal em tempos de escassez, por julgá-lo suspeito de produzir a fome para lucrar. Em um discurso pronunciado no tempo de Juliano, o próprio Libânio reconheceu que a alta do preço do pão era devida tanto a um controle insuficiente do preço praticado pelos padeiros, como à avareza de alguns notáveis, “ávidos que eram de embolsar dinheiro”. Em Roma, em 409-410, a multidão reunida no circo durante um longo tempo de escassez expressou com ironia esse sentimento de que estavam sendo explorados pelos grandes proprietários responsáveis por abastecer a cidade. Num clamor em uníssono, pediam que, já que estavam sendo reduzidos ao canibalismo pelo alto preço dos alimentos, que se impusesse também um preço à carne humana!


Protestos contra o preço dos itens básicos da alimentação antiga, como pão, azeite, mas também vinho, não se restringiam a clamores nos lugares de espetáculo. Eles podiam também tomar a forma do escracho ou da ação direta. Na festa do ano novo de 384, um grupo de jovens que deixava o hipódromo de Antioquia, passou em frente à casa de um notável acusado de promover a escassez do ano passado, com tochas nas mãos, clamando para que ele “vomitasse” o que havia injustamente consumido. Mas em 354, na mesma cidade, o governador Teófilo foi atacado no hipódromo e linchado, enquanto a casa de um notável era incendiada.


Ações como essas não dependiam de um alto grau de organização, mas apenas do conhecimento de formas de expressão e eventualmente de laços de solidariedade derivados do cotidiano. No máximo, nossas fontes revelam a presença de lideranças improvisadas, como os cinco jovens metalúrgicos das fábricas de armas do Império, que atacaram o governador Teófilo, ou o agitador Pedro Valvomeres, em Roma. A inexistência de organizações formais era, aliás, o que tornava tão difícil para as autoridades impedir a ocorrência dessas ações ou punir um grande número de seus participantes.


As ocasiões para essas revoltas muitas vezes eram encontradas nas mudanças nas oportunidades políticas. Assim, o ataque ao governador Teófilo só ocorreu porque a elite de Antioquia estava dividida, parte aliada ao governador, parte ao César Galo, o imperador coadjutor então residente na cidade, que afirmou à multidão que nada faltaria se Teófilo não o permitisse. Mas não se deve confundir a existência de outros interesses com a ausência de motivações próprias daqueles que se revoltam. Em Roma, é possível que o motim que resultou no incêndio da casa de Símaco, o antigo, em 375, tivesse sido provocado, em última instância, por um inimigo do prefeito. De fato, segundo o historiador Amiano Marcelino, a revolta popular havia sido provocada por um boato difundido por um plebeu qualquer que dizia que Símaco preferia misturar seu vinho com a cal de seus fornos do que o vender ao preço que a plebe queria. Mas se o boato provocou a indignação popular (e se as pessoas acreditaram nele) é porque ele coincidia com a experiência plebeia, mobilizando sua consciência da situação de dependência econômica que marcava suas vidas.


Num tempo em que os modos de organização formais de trabalhadores vêm sendo dissolvidos e as revoltas do “precariado” tomam mais uma vez a forma do motim (como nos recentes protestos dos “coletes amarelos” na França), é bom voltarmos a essa lição de método: revoltas efêmeras e ambíguas podem ter rumos e consequências imprevisíveis, mas é indispensável, para compreendê-las, entender as lógicas próprias dos atores, suas razões de agir e os motivos de sua indignação.


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