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Foto do escritorMarcio Monteneri

Quebrando a banca: os jogos de azar na Roma antiga

Por Marcio Monteneri, Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo.


Na Antiguidade Romana, os jogos de azar (alea) eram bastante populares. As regras e a parafernália envolvidas nesse tipo de jogo eram variadas, mas a sorte era o elemento preponderante e comum a todos. O chamado jogo das “Doze Linhas” ou “Doze Inscrições” (duodecim scripta), por exemplo, tinha regras sofisticadas e exigia certa complexidade cognitiva dos jogadores, por conta de suas implicações matemáticas e geométricas. Nesse jogo, um número aleatório, definido pelo lançamento de um ou mais dados, era combinado com uma série de peças móveis sobre um tabuleiro. O tabuleiro contava com três fileiras de doze células ou doze letras. Evidências textuais e arqueológicas sugerem que esse e outros jogos estavam presentes em diversos lugares como bares, praças, basílicas, teatros, mansões, entre outros. Ainda que algumas pessoas jogassem apenas para se distrair, os jogos podiam ser mais que um mero recurso “para diversão dos homens ociosos”, como afirma o arqueólogo Rodolfo Lanciani. Afinal, estavam intimamente ligados com às apostas e, para muitos, podiam ser uma maneira alternativa de ganhar dinheiro.


Em sua maioria, os jogos de azar e as apostas eram ilegais, exceto no mês de dezembro, durante a festa da Saturnália, quando eram liberados. Além disso, os jogadores (aleatores) eram mal afamados entre as elites. Para Marco Túlio Cícero (106 a.C a 43 a.C), por exemplo, os aleatores ocupavam o mesmo lugar social que os glutões, os perfumistas, os bailarinos, os bêbados e as prostitutas (Cat. 2, 23, cf. 2, 10). No século IV, o historiador Amiano Marcelino, em sua obra Res Gestae, descreveu com antipatia o clima de intensa competição entre os adeptos dos jogos de azar, pessoas da “mais baixa e empobrecida condição”, que passavam as noites jogando em tabernas de vinho ou sob os toldos dos teatros. Nas palavras de Amiano: “[...] eles discutem agressivamente nos jogos de dados, emitindo um barulho desagradável ao puxar o ar para dentro com os narizes ruidosos” (Amm. 14, 6, 25, trad. Pedro Benedetti). Apesar das proibições legais e dos ataques feitos pelas elites, acredita-se que a prática era amplamente disseminada, inclusive entre alguns imperadores.


Pinturas descobertas em um antigo bar de Pompeia retratam uma disputa em um jogo de dados. A imagem mostra quatro pessoas em torno de uma mesa. O homem da esquerda chacoalha uma caixa de dados amarela e diz "Estou fora!" (exsi). O outro aponta para o dado e responde: “Não três, mas dois pontos!” (non tria, dvas est). Em seguida, os homens estão de pé, como se brigassem pelo placar, mas o dono do bar intervém: “Saiam do meu bar se quiserem brigar” (itis foris rixsatis).


Uma frases inscrita em um tabuleiro encontrado em Óstia também indica que durante o jogo os ânimos podiam ficar exaltados: “Retire-se, idiota. Você não sabe jogar. Levante-se, perdedor!” (CIL 14 4125, 3).


Um grafite, descoberto em Pompeia, sugere que os jogadores apostavam ou, pelo menos, sonhavam com boladas de dinheiro:


“Eu ganhei em Nucéria, jogando alea, 855 ½ denarii – honestamente!” (CIL 4, 2119)


Com essa quantia - 855 denários e meio -, uma pessoa poderia ter acesso até mesmo a cargos importantes na administração das cidades romanas. Como propõe Nicholas Purcell, sendo ou não uma invenção do autor do grafite, é a aspiração que conta. Mesmo que seja ínfimo o número de pessoas que ganhavam muito dinheiro, os jogadores esperavam por valores substanciais, que possivelmente passavam de uma mão a outra em função das apostas.


Em minha dissertação de mestrado, As Domus Ostienses: Poder e Resistência na Antiguidade Tardia (séculos IV-V d. C.), analisei alguns grafites encontrados nos pátios das mansões aristocráticas que se assemelham a antigos tabuleiros de jogos encontrados em outras cidades romanas. No pátio da mansão chamada Domus del Tempio Rotondo, por exemplo, encontra-se um círculo com linhas inscritas em seu interior (G0056), que foi sulcado em frente ao par de colunas da entrada da sala principal da casa. Em geral, a sala principal era um espaço amplo, ricamente decorado e que tinha sua entrada demarcada por elementos arquitetônicos que indicam um alto grau de importância dentro do conjunto de aposentos das mansões. Possivelmente a sala de jantar (triclinium), cuidadosamente elaborada para enaltecer o proprietário em ocasiões solenes como as saudações matinais (salutatio) e os banquetes (convivium).


O caráter improvisado desse tabuleiro, encontrado justamente no limiar da sala principal, espaço acessível a um público mais amplo, sugere que seus autores eram frequentadores ocasionais que utilizavam o tempo de espera para jogar. Ainda que o jogo fosse uma prática adotada também pelos aristocratas, os donos das casas pareciam ter seus próprios tabuleiros móveis, como vemos nas cenas de jogos de apostas em pinturas e mosaicos, que mostram tabuleiros em mesas de madeira. Portanto, creio que esses tabuleiros improvisados “à faca” no chão eram obra de indivíduos pertencentes aos grupos subalternos, como os clientes que visitavam as mansões.


As evidências que dizem respeito aos jogos na época romana podem iluminar aspectos importantes da vida das pessoas comuns, como seus anseios, suas dificuldades e seus modos de agir diante de certas circunstâncias. Na sociedade romana, como propõe Nicholas Purcell, a esperança dos pobres urbanos pela sobrevivência e pelo avanço dependiam do acesso repentino ao dinheiro. Dentre as oportunidades com as quais os mais pobres podiam contar estavam as benesses cívicas, como a distribuição de grãos, a busca diária por emprego no mercado de trabalho e, claro, a chance do lucro acidental, como aquela oferecida pelo jogo. Os jogos de azar, quando analisados do ponto de vista dos grupos excluídos ou subalternos, podem ser entendidos enquanto estratégias de resistência ou de sobrevivência cotidianas. Investigar os padrões de interação social associados aos jogos, portanto, permite ver como os grupos subalternos, para além da rara rebelião, podiam lutar para reduzir os efeitos da marginalidade, da desigualdade e da exclusão.


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