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Quem construiu as pirâmides do Egito?

Atualizado: 24 de mai. de 2019

Por Julio Cesar Magalhães de Oliveira, Universidade de São Paulo.


“Quem construiu Tebas de Sete Portas? Nos livros estão os nomes de reis. Arrastaram eles os blocos de pedra?” Nesse poema de 1935, o dramaturgo e poeta alemão Bertolt Brecht imaginou as perguntas de um operário que ao ler os livros de história notava a ausência dos trabalhadores nessas narrativas. “Quem construiu as pirâmides do Egito?” não era uma dessas perguntas, mas o que o trabalhador do poema dizia sobre Tebas também caberia a essa questão. As três grandes pirâmides de Gizé, construídas em meados do III milênio a.C., ainda são conhecidas pelos nomes dos faraós para quem foram edificadas: Quéops, Quéfren e Miquerinos. Mas o que podemos saber sobre os trabalhadores que construíram esses gigantescos monumentos?


Durante muito tempo, os egiptólogos e arqueólogos dedicaram pouco interesse em saber onde e como viviam os trabalhadores egípcios. A Egiptologia se constituiu a partir do estudo das inscrições monumentais e as primeiras escavações no Egito visavam apenas descobrir os fabulosos tesouros enterrados em túmulos como os do faraó Tutancâmon. A arqueologia propriamente dita, com o estudo estratigráfico de todo tipo de assentamento, e o interesse mais amplo pelo estudo dos egípcios comuns só se desenvolveram bem mais tarde. No caso do planalto de Gizé, foi só a partir de 1988 que um projeto de mapeamento da região executado pela Associação de Pesquisa do Egito Antigo e dirigido por Mark Lehner, da Universidade de Chicago, dedicou-se a identificar e escavar o assentamento dos trabalhadores empregados na construção das pirâmides.


Lehner iniciou observando a geologia do planalto e formulou a hipótese de que o assentamento se localizaria a sul-sudeste das pirâmides, próximo à embocadura do uádi (ribeirão temporário) que atravessava a região. Ali, suas primeiras escavações revelaram uma série de padarias, sugerindo uma produção em grande escala, mas apenas pela multiplicação de unidades domésticas. A partir de 1999, com maiores recursos, uma equipe internacional com 30 arqueólogos escavou 5 hectares e mapeou toda a área da "cidade dos trabalhadores". Na verdade, os arqueólogos encontraram não uma, mas duas "cidades". A primeira, a leste, era um assentamento com um desenvolvimento orgânico e sem planejamento, que Lehner identificou como o povoado dos trabalhadores permanentes. Era nessa "cidade", com uma feição típica de um vilarejo, que se encontravam as padarias que produziam para alimentar os demais trabalhadores. A outra, a oeste, com ruas em plano ortogonal, planejada e cercada por um muro já conhecido, chamado em árabe de “muro dos corvos”, tinha características bem diferentes. Era aí, por exemplo, que se encontravam as maiores casas e selos que sugerem a presença de administradores.


As escavações trouxeram algumas surpresas e novas questões. Primeiro, o número total de habitações identificadas parecia muito pequeno para o número hipotético de trabalhadores empregados na construção das pirâmides. Heródoto, na Antiguidade, dizia terem sido empregados 100.000 trabalhadores, enquanto os cálculos modernos sugerem uma cifra bem menor, em torno de 10.000 a 20.000 homens. No entanto, não havia no assentamento de Gizé casas suficientes para abrigar nem mesmo a cifra mais baixa. Ao mesmo tempo, o estudo dos edifícios que pareciam ter uma função institucional revelou uma segunda surpresa: quantidades imensas de ossos de bovinos, ovinos e caprinos que seriam o suficiente para alimentar algumas dezenas de milhares de trabalhadores, mesmo que comessem carne todos os dias.


A partir dessas descobertas, a primeira conclusão a que Lehner e seus colegas chegaram é que os trabalhadores empregados na construção das pirâmides não eram as legiões de escravos representados em filmes como Os Dez Mandamentos, de Cecil B. De Mille (1956). O consumo frequente de carne, um luxo do qual os pobres e os escravos eram privados, sugere, ao contrário, que se tratava de trabalhadores especializados e, em certa medida, privilegiados. Seu trabalho podia ser compulsório, como ocorreria ao longo de toda a história do Egito faraônico, mas era provavelmente motivado por obrigações de reciprocidade ou de lealdade religiosa. É o que sugerem os grafites deixados nos monumentos de Gizé descobertos pelo arqueólogo de Harvard George Reisner na primeira metade do século XX e que faziam referência aos “Amigos de Khufu” (o faraó Quéops) ou aos “Beberrões de Menkaure” (o faraó Miquerinos). Expressões como essas parecem mesmo sugerir certo orgulho dos trabalhadores pelo esforço coletivo empreendido.


A existência dessas equipes de trabalhadores especializados, atuando provavelmente em rodízio e por tempo determinado, também explicaria a natureza de muitas das construções identificadas na Cidade Ocidental. De início, os escavadores esperavam encontrar uma arquitetura doméstica convencional. No entanto, a identificação na cidade ortogonal de galerias com 170 metros de comprimento, de aparência moderna, mas com elementos típicos das casas egípcias, fez com que Lehner levantasse a hipótese de que essas construções eram na verdade alojamentos com capacidade para abrigar uma força de trabalho rotativa de 1600 a 2000 trabalhadores (ou mesmo 4000, se considerarmos que as construções tinham, como é provável, dois andares).


Nos últimos anos, nossa compreensão sobre o processo de construção das pirâmides continuou a avançar. Recentemente, no sítio arqueológico de Hatnub, uma antiga pedreira no deserto oriental do Egito, arqueólogos do Instituto francês de arqueologia oriental e da Universidade de Liverpool descobriram um sistema de rampas usado para o transporte de blocos de alabastro. Com buracos de estacas e escadas em ambos os lados, essas rampas são hoje a mais concreta evidência do processo que permitiu aos trabalhadores egípcios mover pesados blocos de pedra para cima e para baixo nas encostas íngremes da pedreira. Inscrições associadas a essas rampas permitiram aos arqueólogos datá-las da época do faraó Quéops (ou Khufu, 2589-2566 a.C.), que encomendou a construção da Grande Pirâmide de Gizé.


Apesar desse constante esforço de pesquisa, as teorias pseudocientíficas, que atribuem a construção das pirâmides aos “alienígenas do passado”, continuam a fazer sucesso na TV e na Internet. Há razões para isso. Como Sarah Bond observou, por trás de todas as teorias de intervenção extraterrestre houve sempre um pressuposto racista e etnocêntrico: a ideia de que seria impossível a um povo não europeu (e ainda mais africano) construir grandes obras de engenharia sem a influência de civilizações mais avançadas. A isso se acrescenta a tendência num mundo da “pós-verdade” de se recusar o próprio conhecimento baseado em evidências, o que tem alimentado toda sorte de negacionismo.


Os trabalhadores egípcios que construíram as pirâmides foram submetidos a um duplo silenciamento: como trabalhadores e como egípcios. Nos tempos que vivemos, recuperar as evidências de suas condições de vida e de trabalho não é apenas uma forma de resgatá-los do que E. P. Thompson chamou de a “enorme condescendência da posteridade”. É também uma maneira de reafirmar a importância do longo, penoso, mas recompensador trabalho de construção do conhecimento baseado em métodos e evidências - o meio mais seguro de preservarmos nossa própria liberdade.


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