Por Rafael Monpean, doutorando em História Social, Universidade de São Paulo.
Todos os anos alguns milhões de turistas visitam Roma, Óstia, Pompeia, Herculano. Apreciam vários monumentos antigos em cada uma dessas cidades, tais como templos, casas, teatros, anfiteatros, termas e lojas. Mas, ao final de um dia de percurso, poucos dão importância ao próprio espaço por onde caminharam nessas visitas. As ruas que percorreram se tornam algo naturalizado, quando não atraem apenas pela sua forma não habitual. Tal atitude tem suas explicações. Elas se encontram enraizadas nos modos como percebemos e lidamos com as ruas e as grandes avenidas nas cidades modernas: enquanto aquilo que está entre um lugar e outro, caminhos, espaços de transição e locomoção. E não são apenas turistas que deixam passar despercebida a importância das ruas para além de sua característica de conexão. Para termos uma pequena ideia, basta lembrarmos do grande número de representações e reconstituições gráficas de edificações antigas que constroem as ruas apenas como um espaço vazio que está ao lado ou entre os edifícios.
Essa concepção, no entanto, está longe das práticas e percepções das ruas na Antiguidade romana. Não é exagero dizer que grande parte da vida quotidiana estava e se desenvolvia nas ruas. Além de serem caminhos entre um ponto e outro, locais de trânsito de pedestres, carroças e animais, as ruas eram lugares de realização dos grandes triunfos das campanhas militares, de aparição e demonstração de poder de figuras proeminentes no cenário político, de procissões religiosas, de realização de trocas comerciais, de uso de serviços variados, de recolha e uso da água de fontes, pontos de encontro e conversa entre os habitantes, dentre outras atividades que variavam durante o dia e a noite. Eram, portanto, locais de justaposição de habitantes oriundos de diversas camadas sociais.
É possível repovoar as ruas e demonstrar uma parte de seus usos pelas camadas populares por meio de alguns exemplos extraídos, em especial, do mundo do trabalho. Negociantes de diferentes tipos de mercadoria realizavam suas vendas nas ruas em diversos locais da cidade, como em grandes vias ou em frente aos edifícios públicos bastante frequentados. O filósofo Sêneca nos dá um bom exemplo do alvoroço desses comércios ao se queixar dos barulhos que o incomodavam quando era vizinho de uma terma pública. Após reclamar dos berros e gemidos dos frequentadores do local, Sêneca (Ep. 56. 2) critica os gritos dos anúncios de comerciantes que estavam nas ruas, dentre eles “o vendedor de bebidas, o salsicheiro, o doceiro, e todos os negociantes de comes e bebes apregoando a sua mercadoria cada um com uma entoação própria”! Sêneca ainda acrescenta os barulhos causados por outros trabalhadores nas ruas, mas que não mais o importunavam por estar há muito tempo acostumado, como os feitos por marceneiros, construtores e vendedores de flautas.
Outros serviços também eram oferecidos nas ruas. É o caso de professores que poderiam realizar suas aulas nas vias ou ao lado de edifícios públicos. Barbeiros costumeiramente realizavam seus trabalhos nas ruas, em frente de lojas, bares e pórticos de teatros, como atestam inscrições que demarcavam os locais de suas atividades gravadas nos pavimentos ou em colunas. Aliás, a demarcação das vias públicas para comércio e mesmo a expansão de edifícios comerciais em direção às ruas eram outras práticas usuais que afetavam a vida dos transeuntes. Marcas de estacas para tendas de lojas e barracas em ruas de ampla circulação são visíveis até hoje em cidades como Pompeia e Cesareia da Mauritânia.
Se Sêneca reclamava dos barulhos dos vendedores, o poeta Marcial nos fornece um bom exemplo daqueles que se incomodavam com o fenômeno dessas ocupações das ruas pelas práticas comerciais. Ao comemorar os feitos de Domiciano num edito de 92 que pretendia “limpar” as ruas removendo essas estruturas diante das lojas, Marcial (7.61) afirma que “Nenhuma pilastra está circundada por garrafas acorrentadas, nem o pretor é forçado a caminhar no meio da lama, nem qualquer lâmina [de barbeiro] é utilizada em meio a uma multidão densa, nem a cozinha imunda de uma loja ocupa toda a rua. Barbeiro, taverneiro, cozinheiro, açougueiro mantêm-se em seus próprios limites. Agora Roma existe, antes era uma grande taberna”. No entanto, a visão normativa de Marcial, e compartilhada por muitos outros membros das elites, esteve longe de se concretizar. A continuidade dos usos dos espaços em frente às lojas foi um fenômeno que perdurou na história romana. A tentativa de impedir essas ocupações também. Legisladores como Papiniano (Digest. 43.10.1.3-5), na segunda metade do século II, relembravam esforços subsequentes que foram utilizados para frear a obstrução das ruas por lojas e bares.
A persistência dessas práticas de ocupação e os entrelaçamentos de atividades presentes nas ruas podem ser bem exemplificados a partir das figurações de um mosaico do século V de nossa era, encontrado nos arredores de Antioquia. Famoso devido a representação da Magnanimidade e de cenas de caça em sua parte central, o mosaico é todo contornado por uma pequena faixa com cenas de diversas práticas realizadas no meio urbano. Em sua composição, a cidade é visualizada com a perspectiva de um transeunte que caminha pelas ruas. Dentre suas imagens que chegaram aos nossos dias é possível acompanhar mesas de bares nas ruas com jogadores de tabuleiro, açougueiros e padeiros trabalhando em meio às vias, da mesma forma que professores, mercadores, carregadores, mendicantes, mulheres e crianças que, dentre outros, estavam nesse espaço que conectava e colocava à vista os edifícios logo ao fundo.
As ruas no mundo romano eram concebidas e experimentadas como próprio local de destino de seus frequentadores. Personagens como Sêneca, Marcial e muito de seus pares sabiam disso e usufruíam dos bens da vida das ruas, mas também possuíam ideais de como as condutas nas vias deveriam ser: sem ruídos perturbadores, sem tumulto nas calçadas, sem a sujeira produzida pelas lojas e seus frequentadores. Por sua vez, as relações de trabalho e de trocas comerciais demonstram como esses ideais esbarram nas experiências e práticas das camadas populares. O quotidiano dos trabalhadores não se encaixa numa rua esvaziada e asséptica. Suas atividades tinham e espalhavam sons, cheiros, sabores e detritos pelas ruas. Ou seja, suas práticas eram um dos principais elementos que dava vida e preenchia as ruas.
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